Algumas epígrafes de O outro pé da sereia,
publicado pela Companhia das Letras aqui no Brasil:
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Não há pior cegueira que a de não ver o tempo.
E nós já não temos lembrança
senão daquilo que os outros nos fazem recordar
Quem hoje passeia a nossa memória
pela mão são exatamente aqueles que, ontem,
nos conduziram à cegueira.
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O Barbeiro de Vila Longe – personagem do romance.
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Eu turvo a água para olhar a transparência da terra.
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Lázaro Vivo, o Adivinho – personagem do romance.
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Primeiro, perdemos lembrança de termos sido do rio.
A seguir, esquecemos a terra que nos pertencera.
Depois da nossa memória ter perdido a geografia,
acabou perdendo a sua própria história.
Agora, não temos sequer ideia de termos perdido alguma coisa.
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O Barbeiro de Vila Longe – personagem do romance.
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(…) nós lhe outorgamos pelos presentes documentos,
com a nossa autoridade apostólica,
pela livre permissão de invadir,
capturar e subjugar os sarracenos e pagãos
e qualquer outro incrédulo ou inimigo de Cristo,
onde quer que seja, como também reduzir
essas pessoas à escravidão perpétua.
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Carta Papa Nicolau V o rei de Portugal, 1452.
COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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Vale questionarmos as representações e as relações de poder.
Vamos desfazer certos nós do pensamento ocidental?
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Os estudos cometem o equívoco referencial em relação ao continente africano. Estão ligados à construção de um conhecimento “cuja gênese remonta ao século XVI, quando surge o racionalismo como método que se desenvolve e se consolida mais tarde, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do sec. XIX, passando a dominar o pensamento ocidental.
(…) a atividade do conhecer passa a ser reconhecida como um privilégio dos que são considerados mais capazes, sendo-lhes, por isso, conferida a tarefa de formular uma nova visão de mundo, capaz de compreender, explicar e universalizar o processo histórico.
Significa dizer que o saber ocidental constrói uma nova consciência planetária construída por visões de mundo, autoimagens e estereótipos que compõem um “olhar imperial” sobre o universo, Assim, o conjunto de escrituras sobre a África (…) contém equívocos, pré-noções e preconceitos decorrentes, em grande parte das lacunas do conhecimento, quando não do próprio desconhecimento sobre o continente africano. Os estudos sobre esse mundo não ocidental foram, antes de tudo, instrumentos de política nacional, contribuindo, de modo mais ou menos direto, para uma rede de interesses político-econômicos que ligavam as grandes empresas comerciais, as missões, as áreas de relações exteriores e o mundo acadêmico.
Por sua vez, em razão dessa racionalidade ser predominantemente ideológica, as representações norteiam o plano discursivo em detrimento da crítica fundamental para a constituição do pensamento. Os africanos são identificados com designações apresentadas como inerentes às características fisiológicas baseadas em certa noção de etnia negra. Assim sendo, o termo africano ganha um significado preciso: negro, ao qual se atribui um amplo espectro de significações negativas como frouxo, fleumático, indolente e incapaz, todas elas convergindo para uma imagem de inferioridade e primitivismo.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. São Paulo: Sol Negro, 2008, p. 17-18.
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