Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
A riqueza da diversidade, tão propagada pela mídia, principalmente quando intenta vender uma imagem exótica e harmônica de um país pronto a ser rifado para o turismo sexual, opõe-se à desigualdade de condições. Como podemos celebrar a diversidade diante do contraste gritante e segregador, que teima em apartar seres humanos? Como podemos celebrar a diversidade se a própria vida recebe um tratamento tão perversamente desigual? Dados recentes do UNICEF revelam que uma criança indígena tem duas vezes mais chances de morrer do que uma criança branca. As crianças negras, por sua vez, tem 25% mais chances de morrer, antes de completar um ano de idade, do que as crianças brancas. A pobreza atinge 56% das crianças negras. Das 530.000 crianças que estão fora da escola, 62% delas são negras. As estatísticas retratam exatamente o lugar de exclusão destinado aos negros e indígenas brasileiros, bem como a insistência em estabelecer papéis sociais de acordo com a cor da pele – distorções que perpassam os discursos escolares, midiáticos, acadêmicos e sociais. Como bem sabemos, uma das formas de tornar um ser invisível é projetar sobre ele um estigma.
Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível. (…) há muitos modos de ser invisível e várias razões para sê-lo. No caso desse nosso personagem, a invisibilidade decorre principalmente do preconceito ou da indiferença. (SOARES, 2005, p.175)
Quando estigmatizamos uma pessoa, a anulamos e vemos o reflexo da nossa própria intolerância. As caricaturas sociais, propagadas em instâncias diversas, inclusive oficiais, minam a possibilidade de discutirmos o racismo e primam por comemorar igualdades que nunca existiram no país.
Recentemente, uma pedagoga me encomendou um planejamento sobre Monteiro Lobato. Eu disse que não considerava o melhor momento para esse planejamento, visto que o autor está no centro das discussões sobre racismo, principalmente depois da divulgação de algumas cartas em que defendia abertamente a Ku Klux Klan. Sugeri um tanto de autores infanto-juvenis, entre eles o Bartolomeu Campos de Queirós e a Elvira Vigna, que são é incríveis! Ela não quis. (Por que as pedagogas adoram uma repetição?) Não contente em insistir, me enviou por email uma frase sobre tia Nastácia, feito uma ordem, para que eu colocasse no estudo. Algo do tipo: diga apenas que ela é bondosa e que representa a cultura popular. Reducionismo pouco é bobagem. Não topei, óbvio! Por que eu escreveria como autora uma frase que não é minha? Por que não questionaria os estereótipos que envolvem a personagem? Por que negligenciaria a perversidade sutil do discurso racista? Por que iria contra a minha ética? Por que divulgaria um estudo tendencioso, num momento tão rico de discussões sobre etnia e direitos humanos, em um portal de educação? Por que descumpriria com o meu papel de educadora? Sugeri, então, fazer um planejamento sobre o momento de fala da Emília, o contraponto da sua inventividade ao academicismo do Visconde. Ficou bacana, entreguei. Até porque não sou a favor da censura. Não deixei de ler Vargas Llosa só porque é um direitista. Mas também não sou a favor de gastarmos dinheiro público com a obra de Lobato, distribuída via MEC, nem tampouco com contos de fadas. Há um manancial literário aí, completamente relegado. E, afinal, com qual personagem a aluna negra deve se identificar? Com a Branca de Neve?
Mas, acreditem, a história não parou por aí. Essa coordenadora me ligou para “conversarmos”. Agradeceu meu posicionamento, disse que os supervisores concordaram comigo, que poderia até dar algum tipo de problema mesmo escrever daquele jeito. Entre as várias asneiras que proferiu muito calmamente, com sua vozinha de moça comportada, fã incondicional de Rapunzel, a que mais me aterrorizou foi: Ah! Entendi, você tem um problema pessoal com o autor! – ela respondia ao meu comentário sobre o massacre feito a Anita Malfatti. Ora! Quando foi mesmo que Lobato morreu? Problema pessoal? Verdadeiramente inacreditável! Ela não conhecia as polêmicas que envolveram a Semana de 22, nem as frases mais emblemáticas de Oswald e Mário. Muito menos a crítica implacável de Menotti Del Picchia, quando proferiu: Somos todos contra os faquirizados, os lerdos, os repetidores, os plagiários inconscientes, os inertes, os inatuais, os passadistas. A arte é fruto da ambiência social e é sempre expressão do momento humano que vive. Essa literatura de múmias, essa estética de decalques, essa tessitura de artificialismos anacrônicos varremo-las, mesmo entre as vaias dos eunucos literários, a gritos escarlates de indignação e de batalha! Ela não sabia que Lobato e sua turma retrógrada, muito influente, usaram a mídia burguesa para desconsiderar os modernistas. Bem, isso lá no início do século 20! Nós estamos em 2011!!!
Eu já disse, né? A pedagoga coordena todo o material didático de um portal de educação!!! E, só pra variar, não sabe nada de nada. Para qualquer escritor, a frase é nunca ouvi falar…
Eu perdi o sono naquela noite, e na outra. Fiquei brava, brava…depois triiiiisssssssste! Fiquei bem triste porque sei que esse discurso é insistente e perigoso, vem trajado de normalidade. E predomina, tanto nas escolas, quanto na academia…
Nunca mais recebi uma encomenda.
Entre as várias histórias absurdas que já presenciei nos colégios: Hora do recreio. Uma professora entra na sala dos professores às gargalhadas porque uma aluna do primeiro ano resolveu assumir um penteado Black. O assunto durou uma semana.
Ai, que banzo!
ATHAYDE, Celso; BILL, MV; SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
BOAVENTURA, Maria Eugênia. (org.) 22 por 22. A semana de arte moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: Ed. USP, 2008.
Dados do UNICEF veiculados no vídeo Por uma infância sem racismo. http://www.youtube.com/watch?v=_aPYuKiKFMg Acesso 02 out 2011.