Trecho inicial:
ENTRE UM SILÊNCIO E OUTRO
um estudo de Cobra Norato, de Raul Bopp
Nathália Guimarães e
Renata Cabral
Traços Biográficos
Ouvir o outro, os outros, é ampliar a dimensão espiritual
de sua própria língua, ou seja, colocá-la em relação.
Édouard Glissant
Descendente de imigrantes alemães, Raul Bopp nasceu em 04 de agosto de 1898, em Pinhal, município de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Foi criado em Tupanciretã, um lugarejo da região missioneira, ponto de passagem e encontro de tropeiros. A infância foi marcada pelos diversos casos sobre terras distantes, notícias que chegavam de longe, narrativas de um povo simples que se reunia na selaria do pai, trabalhador do curtume. O fascínio pelas distâncias e a vontade de desvendar caminhos e trilhas cresceu a ponto de o adolescente gaúcho de 16 anos partir, a cavalo, para a fronteira da Argentina, atravessar o Paraguai e chegar ao Mato Grosso completamente sem dinheiro. A viagem durou cerca de oito meses e o obrigou a pintar paredes para sobreviver. Retornou ao Rio Grande do Sul para iniciar seu curso de Direito, mas não sossegou, conforme esperado. Fez o curso em quatro capitais, Porto Alegre (RS), Recife (PE), Belém (PA) e Rio de Janeiro (RJ). A experiência em Belém, no 4º ano de faculdade, foi reveladora e essencial para a constituição do livro Cobra Norato e para sua visão sobre o Brasil.
Acostumado às planícies, o gaúcho percebeu-se no mundo enigmático e fecundo da Amazônia: A estada de pouco mais de um ano na Amazônia deixou em mim assinaladas influências…A floresta era uma esfinge indecifrada. Agitavam-se enigmas nas vozes anônimas do mato.[1]
Desse encontro, surgiram notas e esboços poéticos – impressões daquela terra misteriosa, rica e lendária. O autor não perdeu a oportunidade de percorrer a densa floresta através de seus rios e canais. Soube ouvir as fábulas e assimilá-las à vida brejeira e cotidiana dos lugares por onde passou. A organização do livro só aconteceu em 1927[2], quando o Movimento Modernista já estava consolidado. Entretanto, o contato de Raul Bopp com os ideários do Movimento antecedeu a Semana de 22. A revista paraense Efemeris, da qual o poeta participou, em 1920, ensaiava um olhar atento à brasilidade mais primitiva, distante das idealizações românticas. Na casa do amigo Alberto Andrade Queiroz, Bopp teve contato com obras europeias, em especial as do Ultraísmo espanhol. Quando o autor chegou ao Rio de Janeiro para cursar o último ano de Direito, portanto, já trazia ideias novas e influências europeias. Não à toa irmanou-se com o verde-amarelismo de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo e rapidamente o substituiu pela antropofagia, mais densa e menos patriótica, de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
Manteve-se discreto em relação ao primeiro momento do Modernismo Brasileiro e sua manifestação no Teatro Municipal. A versão cosmopolita não o empolgou muito, até porque o autor já trazia um manancial de histórias e influências das suas viagens. O seu interesse era mesmo pelas questões nacionais e pela maneira como poderia descrever e redescobrir o País. Quando as primeiras divergências foram desfocadas e o Movimento se empenhou em pesquisar a sociologia, a linguística, a historiografia e a psicologia do País, Bopp assumiu uma participação mais efetiva, principalmente com o grupo da antropofagia.
A personalidade errante de Raul Bopp convergiu ainda com a diplomacia e o jornalismo. O autor não conseguia vivenciar nenhum trabalho sem a paixão, o que justifica, de certa forma, a brevidade dos compromissos profissionais. Ele gostava de viajar por prazer, sem se preocupar com questões burocráticas. Viveu entre 1942 e 1973 em Los Angeles (EUA), Berna (Suíça), Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre (Brasil). Passou também pelo Japão, Guatemala, Peru, Áustria e Espanha. Em 1958 foi embaixador. Publicou alguns livros em prosa, como América, notas de um Caderno sobre o Itamaraty; Memórias de um Embaixador, Bopp passado a limpo por ele mesmo; Vida e Morte da Antropofagia; Longitudes, e outros em verso, como Urucungo, Poesias, Mironga e outros poemas e, claro, sua obra mais significativa – Cobra Norato.
Raul Bopp morreu em 1984, na cidade do Rio de Janeiro.
Devoração crítica
“(…) O interesse da arte está na sua variedade infinita,
é a escrita que cada um de nós tem dentro de si.”
Anita Malfatti
O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese;
contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra
e pelo acabamento técnico; contra a cópia,
pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva
Oswald de Andrade
Sabemos que o princípio hegemônico da razão foi questionado no início do século XX, depois das frustrantes experiências do racionalismo e positivismo. Na arte, o Cubismo (1907), o Futurismo (1909), o Expressionismo (1911), o Dadaísmo (1918) e o Surrealismo (1924) buscaram romper os dogmas anteriores e revelar novas formas e possibilidades de expressão do pensamento humano. Por um lado, os avanços tecnológicos e científicos incitavam o ideário de renovação, com o surgimento do telefone, telégrafo, cinema, avião, automóvel, e com as inovações e descobertas de Sigmund Freud, Albert Einstein e Ferdinand Saussure. Por outro, a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), com seu poder destrutivo, alastrava sentimentos de desequilíbrio e desesperança.
Essas sensações antagônicas, ainda mais perceptíveis depois da Revolução Russa, chegaram ao Brasil no momento crucial da inquietude intelectual modernista. As vanguardas europeias não foram assimilidadas por repetidores de uma estética, ao contrário, por artistas que buscavam um sentido e um rumo novo para o País. Nesse contexto, destacamos a exposição de Anita Malfatti, ocorrida em 12 de dezembro de 1917, que escandalizou a sociedade paulista e alavancou a crítica caduca e corrosiva de Monteiro Lobato – curioso notarmos como o criador da personagem Emília distanciara-se do espírito inovador da própria obra. A boneca falante, personificação da inventividade, uma espécie de contraponto ao racionalismo de Visconde de Sabugosa, é, sem dúvida, um símbolo do pré-modernismo brasileiro, e seu autor, um dos críticos mais ferozes e mordazes de Malfatti e toda a turma de 22.
Destacamos ainda alguns acontecimentos anteriores e decisivos para a Semana de 22: 1ª mostra de arte não-acadêmica de Lasar Segall, pintor russo radicado no Brasil; exposição das esculturas de Vitor Brecheret e dos Fantoches da Meia-Noite, de Di Cavalcanti; publicação de Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário Sobral, pseudônimo de Mário de Andrade, de Paulicéia Desvairada, já com a assinatura original do autor, e de Cinza das Horas e Juca Mulato, de Manuel Bandeira e Menotti del Picchia, respectivamente.
A conhecida Semana de Arte Moderna, realizada de 13 a 18 de fevereiro de 1922, ecoou, na verdade, ideias que já perpassavam os trabalhos dos literatos, músicos e artistas plásticos e que corriam soltas nos encontros calorosos realizados nos cafés ou mesmo na casa de um e outro. Os organizadores desejavam apresentar e afirmar os princípios da chamada arte moderna, por meio de conferências, recitais, exposições e leituras. Alugaram o Teatro Municipal e criaram todo um clima de rivalidade com os adeptos da poesia de gabinete. O resultado não poderia ser diferente: vaias, gritos, urros e muita confusão. Uma parte da imprensa abriu espaço para a polêmica: de um lado, os denominados futuristas, de outro, os passadistas.
A cobretura jornalística das atividades promovidas durante a Semana pautou-se, em São Paulo, de um lado, pelo entusiasmo dos seus idealizadores (…), de outro, pela condenação absoluta daquele ‘delírio coletivo’ (…), em artigos assinados às vezes com pseudônimos difíceis de identificar, outras vezes anônimos, como aconteceu com a série de textos demolidores publicados na Folha da Noite, quase sempre na primeira página.Apelou-se também para a indiferença total. Publicações do porte da Revista do Brasil(…)simplesmente ignoraram a promoção artística em questão.[3]
Não devemos entender a Semana como concretização da estética modernista, mas como uma amostragem, ou mesmo uma ruidosa comemoração que impulsionaria a intelectualidade paulista, e pouco depois, a brasileira. Muito havia ainda para se desbravar e pesquisar. Mas podemos afirmar com certeza que “a reação contra o espírito imitativo das academias”[4] não só acontecera como incomodara os críticos mais conservadores.
Em carta aberta ao Sr. Oscar Guanabarino[5], denominada Terremoto Estético, e publicada no Correio Paulistano, em 23 de fevereiro de 1922, Menotti del Picchia vociferou
Somos todos contra os faquirizados, os lerdos, os repetidores, os plagiários inconscientes, os inertes, os inatuais, os passadistas. A arte é fruto da ambiência social e é sempre a expressão do momento humano que vive. Essa literatura de múmias, essa estética de decalques, essa tessitura de artificialismos anacrônicos varremo-la, mesmo entre as vaias dos eunucos literários, a gritos escarlates de indignação e de batalha.(…)
E a revolução literária, vitoriosamente iniciada na Semana de Arte Moderna, foi o princípio sistematizado da Reforma. A tua reação, Guanabarino, foi uma prova da afirmação corajosa que ela representou. A reforma existia, obscura, instintiva, na consciência de todos os novos. A batalha do Municipal não a criou, não fez mais que a denunciar.[6]
Mediante a avalanche de críticas e a indiferença da mídia mais burguesa, os modernistas criaram e utilizaram sua própria mídia, as revistas literárias, que foram cruciais para a organização e divulgação do que acontecera na Semana. Entre elas, destacamos a Klaxon (maio de 1922 a janeiro de 1923). Podemos mencionar também a Terra Roxa e Outras Terras, A Revista, Arco e Flexa, e Verde.
Como já dissemos, Raul Bopp manteve-se discreto em relação a esse momento inicial. Interessado numa pesquisa mais profunda e fecunda do Brasil, o poeta irmanou-se brevemente com o grupo Verde-amarelo e consolidou sua parceria com o grupo Antropófago – que buscava, pela manifestação artística, recuperar as origens de um Brasil primitivo, intocado pelos colonizadores, a fim de afirmar uma identidade mais genuína. Segundo a estudiosa Vera Lúcia de Oliveira, o interesse não só pelos aspectos enigmáticos, arcanos e irracionais, quanto pela realidade rural e regional – normalmente marginalizada – ligou Bopp ao grupo de Oswald de Andrade. Conhecer e desvendar o País sempre fora interesse do poeta, que acabou por retomar os velhos rascunhos do tempo em que estivera na Amazônia e os configurar à luz da antropofagia. Ressaltamos, no entanto, que as influências foram mútuas; se por um lado sua participação no grupo foi decisiva para a edição e publicação de Cobra Norato, por outro, os mistérios, as sugestões espirituais e lendárias da Amazônia inspiraram não só o manifesto oswaldiano quanto o Abapuru de Tarsila do Amaral. Sabemos que o Manifesto do Pau-Brasil data de 1924, mas o Antropófago foi escrito apenas em 1928, no qual o mote tupi or not tupi, that is the question reverbera a linha psicanalítica (abertamente utilizada pelos surrealistas), contribuição do poeta gaúcho ao movimento.
Na arte, a objetividade não é mais um valor: o homem tem, em si, aspectos obscuros, fantasmas que o atormentam: o absurdo e o non sense são partes integrantes da existência.[7]
A antropofagia foi fundamental para revermos o Brasil, e, sob o signo de devoração crítica, passarmos a escrever a nossa própria história – geralmente contada pela elite branca e europeizada. O ritual indígena eleito por Oswald de Andrade passou a nos simbolizar. Não deveríamos mais repetir e aceitar passivamente os modelos do velho mundo, mas devorá-los, mesclando-os ao que temos de mais genuíno – em busca da nossa identidade sincrética e de uma revolução cultural.
Havia convergências notórias entre os ideários do grupo e a própria trajetória errante de Bopp, interessado pelo estado pré-lógico e misterioso do pensamento – que deveria ser atravessado pela inventividade e renúncia ao entendimento meramente racional. A descoberta do conceito mussangulá[8], já esboçado em 1924 e efetivado em 28, norteou, em certa medida, o estado de aceitação do obscuro e enigmático, bem como a permissão da convivência de realidades contraditórias. Uma forma de romper com a coerência e a lógica cartesiana. Compor poeticamente os Brasis o interessava profundamente
Temos uma geografia do mal-assombrado, de mandinga e mato, com puçangas de cheiro…Temos regiões de terra longe, com áreas de magicismo. Sesmarias sem dono, onde vive o indígena, no seu estado de natureza. Os seus deuses moram na floresta. (…)
Tudo isso tem fundas raízes na terra, de sabor próprio e sem misturas. Temos diferentes regiões de idade social, com mundos mágicos e obscuros. Dispomos de matéria-prima inesgotável, para extrações de ingredientes poéticos.[9]
Além do anseio estético de mergulhar na brasilidade plural de um país ainda não ocidentalizado, intocado, de certa forma, pela modernização e industrialização, Raul Bopp nutria uma terna admiração por Oswald de Andrade, considerado, pelo poeta gaúcho, uma figura complexa, dispersiva, contraditória, inovadora, dificilmente reduzida a um esquema biográfico[10].
Entendemos que o poeta é aquele que inventa uma linguagem em sua própria língua[11], imprime um estilo, beira o indizível e o intraduzível, rompe com a previsibilidade da vida comum, olha além, e, por isso mesmo, eleva-nos a outras possibilidades de significação. Instaura-se nesse conceito, sem dúvida nenhuma, a turma da antropofagia, e especialmente Raul Bopp, que soube ler/ouvir e transfigurar as riquezas da cultura popular – liberto das amarras letradas pré-estabelecidas, que preconizavam a supremacia dos saberes acadêmicos sobre os populares – em uma obra-prima da literatura brasileira. O labor das imagens poéticas articula-se à riqueza lendária das etnias do Norte e à inovação estética surrealista. O poeta concebeu sua obra distante dos preceitos provinciano-fixistas e ainda colonialistas que vigoravam no início do século XX.
Um aspecto importante do discurso colonial é sua dependência do conceito de fixidez na construção ideológica da alteridade. A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido. (…) A força da ambivalência que dá ao estereótipo colonial sua validade: ela garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística.[12]
Essa visão estereotipada e generalizante – criticada teoricamente por Homi Bhabha – diverge não somente da construção narrativa boppiana, quanto do olhar antropófago do artista, que aboliu esteticamente o reducionismo acadêmico da época.
De certa forma, a radicalização do projeto modernista nos colocou em pauta como brasileiros mestiços e híbridos – o que de fato somos – e descartou de vez os resquícios românticos e preconceituosos que dominavam a intelectualidade na época. Ao nos desnudarmos e nos livrarmos do estigma de selvagens, estaríamos prontos para investigar o Brasil e questionar o abismo de classes imposto historicamente. Essa idéia de atribuir à arte uma função transformadora da realidade e uma capacidade de modificar a maneira das pessoas viverem influenciou movimentos futuros, ecoou, por exemplo, na chamada geração em transe, que trouxe como ícones Glauber Rocha, José Celso Martinez Corrêa e Caetano Veloso. Sabemos, infelizmente, que a realidade social e econômica não foi transformada como desejaram os artistas; mas ficam as indagações: Será que não fomos modificados culturalmente? Será que não nos tornamos senhores da nossa voz cultural? A poesia concreta, a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Teatro do Oprimido, a Tropicália, o Clube da Esquina, o Mangue Beat, entre outras expressões artísticas, de certa forma nos respondem.
Os ecos antropófagos são ainda perceptíveis, por exemplo, no lirismo de Paulo César Pinheiro e Capinam, nas canções de Zeca Baleiro, Lenine e Leo Minax, e devem ser aproveitados como suporte para o leitor atual – coautor. Nesse novo-velho teatro social em que atuam como protagonistas a banalização do saber e a superficialidade das emoções, redescobrir o Brasil, pela travessia de Norato, pode nos estimular a uma experimentação densa-libertadora, quem sabe mesmo nos revelar nus, primitivos, abissais, multifacetados, brasileiros. Redirecionamos, portanto, o convite moderno, ambíguo e sampleado da canção[13] de Adriana Calcanhoto: Vamos lamber a língua!
[1] BOPP, Raul. Bopp passado a limpo por ele mesmo. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1972. p.12
[2] A organização se deu no momento em que o autor estava no grupo Antropófago. A publicação oficial foi em 1931. Mas o autor, inquieto, fez várias modificações no poema, editado/reeditado e republicado em outras datas.
[3] BOAVENTURA, Maria Eugênia. Prefácio de 22 por 22. A semana de Arte Moderna Vista pelos seus contemporêneos.São Paulo:EDUSP, 2008. p. 16
[4] ANDRADE, Oswald. Geometria Pictórica. In: 22 por 22. A semana de Arte Moderna Vista pelos seus contemporêneos.São Paulo:EDUSP, 2008. p.61
[5] Jornalista, crítico ferrenho da Semana de 22.
[6] PICCHIA, Menotti del. Terremoto Estético. In: 22 por 22. A semana de Arte Moderna Vista pelos seus contemporêneos.São Paulo:EDUSP, 2008. p.115/117
[7] OLIVEIRA, Vera Lúcia. Poesia, mito e história no modernismo brasileiro. São Paulo: UNESP, 2002. p 252
[8] Não admitir o nascimento da lógica entre eles, aceitar o estado de graça.
[9] BOPP, Raul. In: Poesia, mito e história no modernismo brasileiro, de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo: UNESP, 2002. p.253
[10] BOPP, p 248
[11] GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p.56
[12] BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Reis e Gláucia Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
[13] Vamos comer Caetano, do cd Maritmo. Foi composta depois de a compositora ler nos jornais que Caetano fora desnudado literalmente pelas bacantes do espetáculo de José Celso Martinez Corrêa. O ato antropofágico inspirou a cantora, que acabou por reler tanto a estética oswaldiana quanto a tropicalista, num cd primoroso, que vai dos parangolés de Helio Oiticcica às águas doces de Caymmi.
Almanaque de miudezas poéticas
Rodrigo Santos de Oliveira[1]
RESUMO:
Este ensaio pretende analisar como as crônicas de Hilda Hilst parafraseiam e parodiam o formato almanaque de farmácia. Pretende-se, também, refletir como as práticas de coleção, catalogação e anti-enciclopedismo, presentes na obra, estão atreladas ao inominável.
Palavras-chave: Hilda Hilst; crônicas; coleção; inominável
1- Da crônica ao crônico
Depois da travessia por inúmeras dicções literárias (poesia lírica, prosa e dramaturgia) e de atingir resultados notáveis em todas elas, como ressaltou o crítico Anatol Rosenfeld[2]. Hilda Hilst (1930-2004), poeta paulista, recebeu em 1992 o convite para escrever no “Caderno C” do Correio Popular de Campinas. A escritora, até então, era considerada hermética e inacessível ao público-leitor em geral.
Um dos fatores que possivelmente contribuiu para essa interdição da poeta foi a incidência constante e reflexiva de temas-tabu em seu projeto literário, tais como morte, erotismo e Deus. O que permitiu a alguns críticos a catalogação de um pequeno “dicionário” nominativo hilstiano apropriado aos dois últimos itens. Alcir Pécora (2001), por exemplo, enumera inúmeros substantivos atribuídos aos órgãos sexuais presentes nas narrativas hilstianas:
Para o feminino: cona biriba rosa xiruba xereca mata perseguida pomba gaveta garanhona vulva choca xirica pataca caverna gruta fornalha urinol chambica poça xiriba Maldita brecheca camélia bonina nhaca petúnia babaca ‘os meios’ crica. Para o masculino, não tem menos copiosidade de registros: bagre mastruço bastão quiabo rombudo gaita taco ponteiro Sabiá malho verga mangará ‘um não sei o quê’ cifa farfalho chourição picaço cipó estrovenga toreba besugo porongo envernizado mondrongo trabuco bimbinha fuso mango manjuba pau-barbudo chonga vara ganso. (PÉCORA, 2001, p.17).
Já Vera Queiroz assinala os múltiplos nomes de Deus contidos, sobretudo, em A obscena Senhora D.: “Senhor, Este, O Luminoso, O Vivido, O Nome, O Menino Louco, O Mais, O Todo, O Incomensurável, Porco-Menino Construtor do Mundo, Menino-Porco, Luzidia Divinóide Cabeça, O Outro, La Cara, La Cara Oscura, Homem Cristo”. (QUEIROZ, 2000, p.69).
Numa tentativa de orquestrar alguns desses blocos temáticos, a autora os classificou em obras que fazem alusão parafrásica a títulos de tratados filosóficos (Do desejo, Da morte, Do amor) e acabou por adicionar a eles outras subdivisões. Configurando, dessa forma, outros livros como Do desejo composto por Via Espessa, Amavisse, Alcoólicas; o que amplifica e ressignifica a dimensão enunciativa do assunto tratado.
A tríade temática mencionada aparece revista e ampliada nas crônicas e/ou formas breves datadas do período entre 1992-1995 e compiladas em Cascos & carícias (1998), publicada pela Nankin Editorial. O conteúdo delas faz referência às indagações existencialistas sobre o estar/ pertencer ao mundo, ao status minimizado da poesia, do local periférico do conhecimento na sociedade capitalista e ao engajamento político-poético da escritora diante das corrupções e descasos governamentais para com a população. Além de apresentar a inserção de textos literários, veiculados em outras obras, de autoria da própria poeta. O que possibilita ler o conjunto de crônicas como uma espécie de “antologia de meus textos preferidos”.
Quanto à linguagem utilizada, observa-se um hibridismo entre a modalidade formal e a coloquial. E, ao contrário do que ainda insiste em pontuar alguns teóricos, foi esse formato que possibilitou a divulgação e expansão da palavra da poeta. Como ratifica José Luis Mora Fuentes:
Talvez a importância maior das crônicas tenha sido a de expor o surpreendente Universo Hilstiano a um público bem mais vasto do que aquele dos seus tradicionais seguidores. Mérito que, sem dúvida, devemos exclusivamente ao veículo utilizado, o jornal, que independe da precária distribuição com que os livros dos nossos melhores escritores e poetas costumam ser brindados. (FUENTES, 1998, p.15)
Os textos neste veículo funcionam, às vezes, como palanque, megafone verborrágico para as denúncias sociais e políticas da época. Num outro nível de vínculo, a autora acaba por constituir um catálogo político-poético que representa um mapeamento árido das mazelas nacionais, com texturas próximas ao estilo de Sebastião Salgado mesclado às imagens ilustrativas do poema “O bicho”, de Manuel Bandeira:
O País está vivendo uma crise de abandono, de total desamparo. Milhares de pessoas famintas, milhares de pessoas nas filas quilométricas da saúde, da Previdência, etc, etc. Tanto nos confins do país, em Monte Santo, na Bahia, onde os bebês têm morrido de fome, onde não há nem o mandacaru, onde a miséria é absoluta, como nas capitais, nas cidades onde pessoas moram em bueiros e se alimentam de lixo. Em Pirajuí (SP), uma família não vê um litro de leite há três meses e a filha de dez anos mama nas tetas de Dindinha, uma cachorra. (HILST, 1998, p.111)
Dessas “vidas secas” arquivadas, em estágio crônico no contexto histórico do país, o factual revela-se pela sua natureza quase absurda, inominável. Registros, marcas do “dissoluto sem nome que há no homem” (HILST, 1998, p.133). Para Vera Queiroz, a palavra hilstiana vai ao encontro e, por que não, de encontro com o inominável, como tentativa de apropriação: “Ele (o texto) espirala-se obsessivamente em torno de si, formulando perguntas acerca do inominável das constrições humanas, em busca de sentidos para a radicalidade humana” (QUEIROZ, 2000, p.12).
No entanto, não só de agruras a obra se alimenta. Pela atmosfera múltipla que o próprio gênero propicia, Hilda Hilst acaba por reler-se e inserir o riso como válvula socioculturalmente necessária e condimento significativo ao “saber/ sabor” proporcionado durante a leitura dos textos. Como se pode perceber nesta justificativa referente à chamada trilogia erótica[3]: “Às vezes me perguntam o porquê de eu ter optado pelo riso depois de ter escrito as minhas ficções, meu teatro, minha poesia (…). Optei por minha salvação. E disse-o num poema: porque mora na morte/ Aquele que procura Deus na austeridade” (HILST, 1998, p.15). Essa busca pelo elemento inominável enquanto ordem divina é recorrente nas crônicas, sobretudo quando Hilst se indaga acerca da intervenção do criador perante os problemas mundiais. Portanto, os textos apresentam-se como tentativas de nomeação das coisas monstruosas, cotidianas e sublimes do mundo. Tais classificações, enunciadas pelo riso, configuram-se como exercícios ficcionais, pois, como concebe Maria Esther Maciel, muitas vezes “onde falha a classificação advém a imaginação” (MACIEL, 2008, p.39).
2- Do almanaque: coletânea
O humor debochado presente em Cascos & carícias reproduzido sob os moldes de aforismos, receitas, conselhos e listas acrescido do suporte crônica (que segue a lógica de seqüência linear do calendário e suas datas comemorativas), somado ao público destinatário projetado, possibilitam ler a antologia como paráfrase de almanaques de farmácia veiculados no Brasil nas décadas de 20 a 50.
Segundo Vera Casa Nova, esses livretos eram compostos por uma orientação ideológica positivista propagada discursivo-pedagogicamente em propagandas de remédios e conselhos a homens e mulheres sobre referências do bem estar de se viver com saúde, de se expurgar as enfermidades e, conseqüentemente, a morte. Em tais almanaques, há a difusão de uma espécie de simulacro do saber científico. Para a autora, esses manuais representam uma “Pequena enciclopédia das classes populares”:
A ciência do almanaque de farmácia, saído dos bancos da escola, é muito mais, história da ciência do que ciência (química, física, biologia e matemática) é divulgada, popularizada, através de certas práticas ensinadas para serem repetidas, freqüentemente como lazer, em serões, em família. Diríamos, até, uma ciência caseira, ou uma ciência lúdica. (CASA NOVA, 1996, p.60)
Se por um lado, o discurso “mente sã, corpo são”, proveniente dos manuais, é endossado em Cascos & carícias. Como neste trecho em que a autora critica o modo falacioso de propagandas educativas para DST/ AIDS:
Não acredito que em tempos de AIDS e Ebola nenhum comunicador tenha encontrado uma fórmula sóbria e eficaz para alertar o povão sobre o perigo das relações sem preservativos! Vocês acham que lá nos cafundós (que é o Brasil inteiro) Seo Mané vai entender o que estão querendo dizer em meio àquela suarenta de traseiros e tetas, e todos rebolando frenéticos num frenesi dementado e patético? O que vai acontecer com essa estória de banana é o seguinte:
ô Seo Mane, já comprô as bananas pras camisinhas?
já seu Jucão.
põe no cacho inteiro, viu? assim a gente pode metê pra valê[4] (HILST, 1998, p.166).
Por outro, há uma burla, pelo viés da ironia, desses valores remediáveis: “Sou do tipo de vai à farmácia e pergunta se há alguma novidade”. O tom jocoso também está presente nas paródias de mensagens aforísticas e receitas contidas nos almanaques, como “Bom dia, leitor. E ainda que as janelas se fechem, é certo que amanhece” (HILST, 1998, p.66). E:
Receitas de antitédio carnavalesco
Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o carnaval.
IX
Se você quer se matar porque o país está podre, e você quase, pegue uma pedrinha de cânfora e uma lata de caviar e coloque ao lado seu revólver. Em seguida, coloque a pedrinha de cânfora debaixo da língua e olhe fixamente para a lata de caviar. Só então engatilhe o revólver. (É bom partir com olorosas e elegantes lembranças. Atenção: não dê um tiro na boca porque a pedrinha de cânfora se estilhaça). (HILST, 1998, p.33).
Além de expor opiniões que resvalam discursos e temas periféricos do senso comum, devido ao público destinatário heterogêneo do jornal, Hislt acrescenta matizes eruditos aos textos ao citar escritores, filósofos, físicos e matemáticos da cultura ocidental. Nessa operação de “desempacotar minha biblioteca”, nomes (Simone de Beauvoir, Drummond, Camus, Bataille, Nelson Rodrigues, Sartre, Sade, Arthur Koestler, etc) e obras aparecem como links associativos que possivelmente despertavam(am) no leitor a prática da pesquisa enciclopédica. Tal exercício, em determinados momentos, era impingido pela autora: “P.S: Jonathan Swift (1665-1745). Se quiser saber mais dados, informe-se.” (HILST, 1998, p.175). Outras vezes, aparece como citação em tom crítico “Tem sido mais fácil compreender Heidegger, Wittgenstein, sânscrito, copta do que compreender explicações de ministros e quejandos” (HILST, 1998, p.41). Esses elementos permitem considerar o valor híbrido dos textos que mesclam saber popular, saber científico e “saber” literário.
Olga Pombo conceitua, inicialmente, a enciclopédia como “um panorama que se pretende completo, imparcial e objectivo do conjunto dos conhecimentos disponíveis numa determinada época” (POMBO, 2006, p.181). Ressalta, ainda, que a enciclopédia a partir do século XVII era voltada para um público letrado, uma vez que divulgava referências primordialmente científicas. Dentre as diferenças entre enciclopédia e almanaque, Pombo pontua:
A enciclopédia não é um amontoado de textos descontínuos de um mesmo autor ou proveniente de colaborações esparzas. Ela não é nunca uma miscelânea, mas um conjunto de partes interdependentes, uma apresentação ordenada. Daí que obras similares como gazetas, almanaques, (…) não possam ser incluídas no ‘gênero’ enciclopédia. (…) a ambição da enciclopédia não é o fechamento do sistema, mas a circulação da unidade. O seu objetivo é mostrar o ciclo do conhecimento na unidade e harmonia do seu propósito. (POMBO, 2006, p.187).
Tais considerações possibilitam conceber a obra em questão enquanto projeto anti-enciclopedista. De maneira que mimetiza, até certo ponto, formatos dos almanaques, com o intuito de subverter qualquer tipo de ordem, seja científica, organizacional, política ou até mesmo a ordem semântica das palavras:
Semântica – Antologia do Sêmen, Solipsismo – Psiquismo solitário, Hipérbole – Bola grande, Xenofobia – Fobia de Xenos, Ligadura – Liga das senhoras católicas, Ânulo – Filete colocado por sob o bocel da cornija do capitel dórico, Bocel – Corruptela de boçal, (…) Democracia – Poder do demo, Paradoxo – Oxiúros em estado de repouso (parado), República – Ré muito manjada. (HILST, 1998, p.63).
Entretanto, se for considerada a prática informativa e, ao mesmo tempo, antididática suplementada pela difusão de referências intelectuais do século XX, acrescida à divulgação dos textos poéticos de Hilda Hilst, o conceito “Pequena enciclopédia das classes populares” concebido por Casa Nova (1996) não pode ser descartado ao se ler Cascos e carícias.
3- Da poesia: mínimas reverberações
Um elemento significativo da coletânea que subverte a influência dos almanaques é a concepção poética de morte enquanto forma de transcendência, condição sublime para a existência. Há, no decorrer dos textos, seja de forma cômica (como na Receita de antitédio carnavalesco), seja de forma literária, certa apologia ao suicídio:
O homem tava olhando o mar. Chegou outro e disse: bonito o mar, não?
É.
Ficaram horas ali. Aí o segundo disse pro primeiro: é tão bonito que vou me afogar. Vai, disse o outro. Foi, sacudiu algumas vezes a mão direita à guisa de adeus e afundou.
Cada coisa que me acontece… disse o primeiro. Levantou-se da areia, tomou três talagadas no bar da esquina, urinou no poste, foi para casa e dormiu muito bem.
Moral da estória: “A cada momento, alguma forma alcança a perfeição ao nosso tato ou visão”. (Walter Pater). (HILST, 1998, p.128).
Essa apologia é recorrente na lista de poetas suicidas enumerados e lembrados pela escritora:
O poeta pode ser violento. A maior parte das vezes contra si mesmo. Um tiro no peito, gás, veneno, um tiro na boca como fez Hemingway, que também foi poeta em O velho e o mar; Maiakovski, um tiro no peito; Sylvia Plath, gás de cozinha; Ana Cristina César, um salto pelos ares; etc etc etc. ‘Os delicados preferem morrer’, dizia Drummond. (HILST, 1998, p.36)
Como foi abordado, a publicação dos textos hilstianos em jornal representou mais que uma aproximação entre a autora e o público em geral, mas também a divulgação de seus textos literários já publicados anteriormente que haviam sido esquecidos e, de certa forma, apagados da memória literária nacional, devido à falta de reedição das obras por parte das editoras. Nota-se, como grande achado nessas crônicas, a concepção de poesia para Hilda Hilst:
É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. Se pelo menos um amante de poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, escreva, apenas isso: fui atingido. (HILST, 1998, p.53).
Essa auto-referência, ou “modo de me ler”, justifica tanto a metáfora cascos e carícias que nomeia a obra, quanto ao verbete de si mesma que a poeta esquadrinha ao longo dos textos. O que possibilita a prática seletiva e propagação de uma “coleção de si”, configurada intencionalmente e de igual teor nos textos poéticos e imagem intelectual de si mesma arquivados por Hilst ao serem estampados nos jornais. Como postula Foucault “O arquivo é a lei do que pode ser dito” (FOUCAULT, 2007, p.133).
Dessa forma, o formato crônica é rasurado, uma vez que revela múltiplas facetas enunciativas. Ao demonstrar episódios de sua vida, suas leituras filosóficas do cotidiano, seus precursores, Hilda arquiteta uma espécie de “arquivo público”. Ítalo Calvino, ao considerar a problemática da unidade em textos de Borges e Perec, defende o conceito de “enciclopédia aberta”, ao questionar o compromisso totalizador dessa obra que é filtrado e cindido pela literatura: “Hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice” (CALVINO, 1990:131). Para Calvino “Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”. (CALVINO, 1990, p.138).
Talvez, a partir dessa perspectiva, o poeta é comparado por Hilst a um ornitorrinco. Por apresentar recortes oriundos de suas leituras no corpo criativo de sua palavra poética. Por cultivar a “biologia do híbrido”[5]. E por fugir a taxonomias, transfigurar máscaras engendradas, exigidas pela sociedade.
Dentro da pluralidade temática que Cascos e carícias manifesta, a poesia é apresentada como pretexto para autora se distanciar/ sublimar-se das catástrofes sociais e compromisso semanal de escrita “Não estou afim de escrever crônica, não. Tô afim de quimeras. Na vida e no texto”. (HILST, 1998, p.168). A mensagem hilstiana “Só a poesia salva”, pode ser, de maneira figurativa, associada a anúncios publicitários de almanaques e, portanto, pode-se lê-la como lenitivo, elixir de uso imediato para se sustentar enquanto ser humano no mundo.
Se pensada pela estruturação seletiva de Hilst ao expor seu ofício poético, ou seja, ao retirar a palavra de seu uso funcional, cotidiano, superficial; e, assim, prezá-la. A obra em questão articula-se ao valor de propriedade construído pelo colecionador, conceito elaborado por Walter Benjamin: “Uma relação com as coisas que não põe em destaque seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas que as estuda e as ama como o palco, o cenário de seu destino”. (BENJAMIN, 1987, p.228).
Apesar de não estar integrado à coletânea, cabe ressaltar o poema de abertura de Da morte .Odes mínimas, composto intecionalmente por 50 poemas para celebrar o aniversário de 50 anos da poeta. Nesse, há uma catalogação de possíveis nomes atribuídos à morte:
Te batizar de novo
Te nomear num traçado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar
Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar seus nomes perecíveis:
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não? (Hilst, 2003, p.29).
A celebração da morte aqui se dá de maneira intrinsecamente lírica nos versos “Feixe de flautas” e “E cantar seus nomes perecíveis”. Os supostos substantivos-adjetivados desconectados reverberam o caráter multiforme que a morte assume na sociedade ocidental e o “Por que não?” instiga a evidência dessa mutabilidade pelo ato de (re)batizar necessário ao ofício poético. O poema revela que toda tentativa de nomeação e catalogação comporta seus contrários, seu conceito indefinidamente infinito, seu estágio perecível, sua anulação.
Conclui-se que a obra em questão apresenta-se como engajamento poético diante das atrocidades inomináveis as quais somos submetidos. Hilda Hilst, como poeta-cidadã, oferece sua contribuição mínima diante das mazelas e monstruosidades que nos afetam. Mínima se consideramos o eco restrito alcançado pela máxima extensão de sua voz. Demonstra-se, enquanto escritora-leitora e articulista cultural, ser colecionadora de certa tradição intelectual impressa neste almanaque de miudezas poéticas.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca In Rua de mão única: obras escolhidas v.2. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1987. p.227-235.
CALVINO, Ítalo. Multiplicidade In Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.115-138.
CASA NOVA, Vera. Lições de almanaque: um estudo semiótico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
FOUCAULT, Michel. O enunciado e o arquivo In Arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.87-143.
FUENTES, J. L. M.. A rameira e santa In Revista Cult, São Paulo, n 12, p-14-15, jul.1998.
HILST, Hilda. Cascos & carícias: crônicas reunidas. São Paulo: Nankin Editorial, 1998.
Hilsta, Hilda. Da morte. Odes mínimas. São Paulo: Globo, 2003.
MACIEL, M. E.. O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea. São Paulo: Lume Editor, 2008.
PÉCORA, Alcir. A moral pornográfica. Suplemento Literário do “Minas Gerais”. Belo Horizonte: Secretaria do Estado da Cultura de Minas Gerais, n.70, p-16-19, abr.2001.
POMBO, Olga. O projeto enciclopedista In Enciclopédia e hipertexto. Lisboa: Edições Duarte Reis, 2006. p.180-193.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.
ROUBAUD, Jacques. Os animais de todo mundo. Trad. Paula Glenadel e Marcos Siscar. São Paulo: Cosac Naif, 2006.
[1] Mestrando em Estudos Literários – Universidade Federal de Minas Gerais.
[2] Cf. Hilda Hilst: poeta, narradora e dramaturga. Disponível em: http://www.angelfire.com/ri/casadosol/critaarhtml>. Acesso em: 21 jul.2006.
[3] A chamada trilogia erótica é composta pelas obras: O caderno rosa de Lory Lambi, Contos d’escárnio/ Textos grotescos e Cartas de um sedutor.
[4] Observa-se que os personagens inventados pela autora parafraseiam, de certa forma, o personagem rural de Monteiro Lobato: Jeca Tatu. Emblema do homem do rural dos anos (1920-1950) e, também, encontrado em almanaques, como o Almanaque Biotônico Fontoura.
[5] Verso pertencente ao poema “O ornitorrinco”, de Jacques Roubaud.
Muito bem usado o meu livro. Obrigada.Texto critico de ótima qualidade. Abraço. Vera casa nova