março 31, 2009

 

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

 

 

Por Herberto Helder

 


março 24, 2009

Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício.

Por Walter Benjamin

 


março 14, 2009

o grito. Munch.

– 

Ressurreição de Camille

(Eduardo Galeano)

 A família declarou-a louca e meteu-a num manicômio.

Camille Claudel passou ali, prisioneira, os últimos trinta anos de sua vida.

Foi pra o seu bem, disseram.

No manicômio, cárcere gelado, se negou a desenhar e a esculpir.

A mãe e a irmã jamais a visitaram.

Uma ou outra vez seu irmão Paul, o virtuoso, apareceu por lá.

Quando Camille, a pecadora, morreu, ninguém reclamou seu corpo.

Anos levou o mundo até descobrir que Camille não tinha sido apenas a humilhada amante de Auguste Rodin.

Quase meio século depois de sua morte, suas obras renasceram e viajaram e assombraram: bronze que baila, mármore que chora, pedra que ama. Em Tóquio, os cegos pediram licença para apalpar as esculturas. Puderam tocá-las. Disseram que as esculturas respiravam.

 –

Van Gogh

(Eduardo Galeano)

 

Quatro tios e um irmão se dedicavam ao comércio de obras de arte, mas ele só conseguiu vender um quadro, um único, em toda a sua vida. Por admiração ou lástima, a irmã de um amigo pagou quatrocentos francos por um óleo, O vinhedo vermelho, pintado em Arles.

Mais de um século depois, suas obras são notícia das páginas financeiras de jornais que ele jamais leu,

são as pinturas mais cotadas nas galerias de arte onde nunca entrou,

as mais vistas em museus que ignoravam a sua existência

e as mais admiradas nas academias que lhe aconselharam a se dedicar a outra coisa.

Agora Van Gogh decora restaurantes que lhe negariam comida,

consultórios de médicos que o trancariam num manicômio

e escritórios de advogados que o meteriam na prisão.

 

Esse grito

(Eduardo Galeano)

 

Edvard Munch escutou que o céu gritava.

Já havia passado o crepúsculo, mas o sol persistia, em línguas de fogo que subiam do horizonte, quando o céu gritou.

Munch pintou esse grito.

Agora, quem vê seu quadro tapa os ouvidos.

O novo século nascia gritando.

 

Kafka

(Eduardo Galeano)

 

Quando os tambores da primeira carnificina mundial andavam soando perto, Franz Kafka escreveu A metamorfose. E pouco depois, com a guerra já começada, nasceu O processo.

São dois pesadelos coletivos:

Um homem desperta transformado numa gigantesca barata, e não consegue entender por que, até que no final é varrido com uma vassoura;

E outro homem é preso, acusado, julgado e condenado, e não consegue entender por que, até que no final é apunhalado pelos verdugos.

De certa forma essas histórias, essas obras, continuavam todos os dias nas páginas dos jornais, que davam notícia do bom andamento da máquina de guerra.

O autor, fantasma de olhos febris, sombra sem corpo, escrevia na derradeira fronteira da angústia.

Pouca coisa publicou, quase ninguém leu.

Foi-se embora em silêncio, como tinha vivido. Em sua dolorosa agonia, só falou para pedir ao médico:

– se o senhor não for um assassino, me mate.

 

Trechos do novo livro de Eduardo Galeano Espelhos. Uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008

 

 


março 12, 2009

Quase todo poeta denota em si a cidade-imagem…

E o que não remonta carrega o odor do devir

Que cobre todo o lago azul

Onde as palavras estão gastas de medo.

 

Quase todo poeta denota em si o encontro do absurdo,

O mediterrâneo aberto para contemplar as árvores

Que surgem dos seus olhos,

O grito em branco derramado

Sobre mísseis distantes…

 

Quase toda poesia respira ainda que sob gases e solventes,

Ainda que turvo infarto, lugar piano onde as mãos

Não podem nada dizer frente ao poema,

E nada mais restar ao escuro da voz,

Quase toda fina,

E os papéis velhos derramam os dias novos que respiram…

Julius.

Julius é um desses amigos que a gente encontra, depois de longa data, e parece que foi ontem. A intimidade continua ali, misteriosamente instalada. Inteligentíssimo, tira-me sempre da obviedade cotidiana, cansativa e reducionista. Quando o encontro, volto a sonhar… chego em casa e, sem perceber, estou com o lápis na mão e um sorriso de derramar crisântemos e íris.

 


março 8, 2009

 

É crua a vida. Alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

Como-a no livor da língua.

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

No estreito-pouco

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

                                                                              Hilda Hilst

 

 

Para ela a escrita é um sobressalto…

Hilda Hilst no dia internacional da mulher…

porque definitivamente queremos lacerar as conformidades e subverter os clichês.

Chega de poesia forno-e-fogão do interior mineiro, católica e retrógrada, para nos “homenagear”.


março 6, 2009

A grande narrativa

            Por Renata Cabral

 

                            Paradoxo do reagrupamento

0=(1+1)+(1-1)+(1-1)+…

0=1+(-1+1)+(-1+1)+…

0=1+0+0+…

0=1

 

Do infinitesimal ao infinito, o movimento espiralado

– tensão e repouso, silêncio e som –

de eixo inexato

cujo centro é o centro do centro do centro,

equivale à grande narrativa.

Rizomática, ela se desloca,  

suspendendo a cronologia previsível do tempo e a edificação do espaço. Intertextual, hipertextual, transtextual,

faz-se em rede.

Amálgama de micro e macro estruturas de composição.

Tecido matizado de cores.[1]

Trama vazada de silêncios, sons, ruídos, estilhaços.

Câmara de ecos, [2]

soma de átomos.

O quark e a Via Láctea. A bactéria e a galáxia. [3]

 Língua de fogo, átimo de pó. Carne da palavra feita da pré-palavra;

contínua, pós-palavra.

Textura puída.

E de volta à palavra, ao silêncio, à palavra, ao…

 

Pulsação.


[1] LLANSOL, Maria Gabriela.

[2] SALOMÃO, Waly. Algaravias.

[3] RENNÓ, Carlos; GIL, Gilberto. Átimo de pó.


março 5, 2009
foto de Nuno Lobito

foto de Nuno Lobito


março 3, 2009

 

Ela em setembro, 22 de 2006.

Lenise Regina, sem data pra ser chuva

 

 

Colada a boca ao poema, não ouviu nada. Não ouviu som de palavra, nem de silêncio. Silêncio é o que tem dentro da pedra quando se quebra. Quando atirada em rio, a esmo, displicentemente. Trouxe o poema, folha dobrada embaixo do braço, depositou-o junto aos demais. Os poemas guardados na caixa traziam cifrados em si o mundo, apesar das tantas tentativas de desvelo impressas no papel. Um poema é de sentir e se não se sente é porque não há. Quando a mãe perguntava o que trazia na caixa respondia, “sentimentos”. “Como assim, sentimentos?” “Vontade dançar na chuva, de comer o cheiro morno do tijolo depois dela, de comer quiabo com angu em dia de frio, sentimentos, ora”.