
nÃo dá para comEçar o ano em marcha à ré,
bajulando olhares caducos e posTuras engessadas…
beiJo molhAdo e bom bocado de WaLy:
minha boca saliva porque tenho fome
e essa fome é uma gula voraz
que me traz cativo
atrás do genuíno grão da alegria
que destrói o tédio
e restaura o sol
no coração do meu corpo
Waly Salomão

O que o poeta pretende é desentranhar a fúria dionisíaca do ventre sintaxeal, ou seja, é necessário “inventar metas para atravessar, ver através”, perambular por entre, sob e sobre as fendas da existência; tornando-se nômade e assustadoramente demolidor (“guerreiro”), recolhendo e distribuindo errâncias e delírios, sem bastar-se a si mesmo.
Trecho do livro O amante da algazarra. Nietzsche na poesia de Waly Salomão. De Flávio Boaventura. Editora UFMG, 2009
W.S.: CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY
Waly Salomão
A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
…
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
…
A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?
…
Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido
o que traz a marca d’água d’hoje.
…
Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozonais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.
…
Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.
…
E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.
…
Corrigindo:
o humano fado.
A trama da vida é prolífica de sinais e o poeta é uma espécie de flâneur que espatifa o eu fechado, movido pela pulsão de fuga rumo a outros. Rumar, enfim, em busca de identificações múltiplas, tornar-se nômade “SOB O SIGNO DA DEVORAÇÃO”, exaltando a incompletude permanente da vida.
Trecho do livro O amante da algazarra. Nietzsche na poesia de Waly Salomão. De Flávio Boaventura. Editora UFMG, 2009
