abril 23, 2010

Pessoas boníssimas (o Boave e a Cristiane Grando), de longe, enviaram suas homenagens; que bacana, fico muito feliz…e reproponho a celebração, sempre!…


Amavisse

Hilda Hilst

Traduction / Traducción

Cristiane Grando – Espérance Aniesa

I

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia

Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível

Porque de barro e palha tem sido esta viagem

Que faço a sós comigo. Isenta de traçado

Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:

Para teu corpo de luz, dois fardos breves.

Deixarei palavras e cantigas. E movediças

Embaçadas vias de Ilusão.

Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti

Pássaro-Poesia

E a paisagem-limite: o fosso, o extremo

A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.

No Amanhã.


Emporte-moi, Oiselle-Poésie

Quand tu croiseras l’Avenir, la lumière, l’impossible

Car le voyage que je fais toute seule

N’est que boue et paille. J’emporterai juste le vertige

Et la foi. Point de tracé ou de géographie

Compliquée, point de bagage :

Pour ton corps de lumière, deux fardeaux brefs.

Je laisserai les mots et les chansons. Et mouvantes

Embuées les voies de l’Illusion.

Je n’ai pas chanté les quotidiens. Je n’ai chanté que toi

Oiselle-Poésie

Et le paysage-limite : le fossé, l’extrême

La convulsion de l’Homme.

Emporte-moi.

À l’Avenir.


Llévame contigo, Pájaro-Poesía

Cuando cruces el Mañana, la luz, lo imposible

Porque de barro y paja ha sido este viaje

Que hago a solas conmigo. Libre de trazado

O de complicada geografía, sin ningún equipaje

He de llevar apenas el vértigo y la fe:

Para tu cuerpo de luz, dos fardos breves.

Dejaré palabras y cánticos. Y movedizas

Turbias vías de Ilusión.

No canté cotidianos. Sólo te canté a ti

Pájaro-Poesía

Y el paisaje-límite: el foso, lo extremo

La convulsión del Hombre.

Llevame contigo.

Al Mañana.

hh – 80 anos

hoje
bem dizer a que venho
te mordo inteira
risonha


por isso passeio em carruagem aberta
desfilando teu corpo
sem algemas ou ganchos


que dizer do tempo
animal caprichoso
que pasta e trota


que dizer das coisas movediças
que encarnam
leves


hoje, manhã ensolarada
roçando toda em minha pele


flávio boaventura, o boave



abril 21, 2010

Hoje Hilda Hilst faria 80 anos.

Faço desse espaço virtual um pedaço da sua morada

uma casa de águas. Romã baba alcaçus,

doçuras e iras.

Estão todos convidados a entrar

para celebrar a obra e a poeta…

E qualquer palavra que eu tente dizer agora me parece pequena,

desnecessária;

apenas

costuro o infinito sobre o peito

como aqueles que amam.

CALMA, CALMA, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens de teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado.

Trecho de Fluxo, narrativa dedicada à amiga Lygia Fagundes Telles, do livro Fluxo-Floema, São Paulo: Globo, 2003

(…) je saisis en sombrant que la seule verité de l’homme, enfin entrevue, est d’être une supplication sans réponse.

Georges Bataille

Com meus olhos de cão paro diante do mar. Trêmulo e doente. Arcado, magro, farejo um peixe entre madeiras. Espinha. Cauda. Olho o mar mas não lhe sei o nome. Fico parado de pé, torto, e o que sinto também não tem nome. Sinto meu corpo de cão. Não sei o mundo nem o mar a minha frente. Deito-me porque o meu corpo de cão ordena. Há um latido em minha garganta, um urro manso. Tento expulsá-lo mas homem-cão sei que estou morrendo e que jamais serei ouvido. Agora sou espírito. Estou livre e sobrevoo meu ser de miséria, meu abandono, o nada que me coube e que me fiz na Terra. Estou subindo, úmido de névoa.

Trecho de Com meus olhos de cão. São Paulo: Globo, 2006

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.

Love, love, my season

Sylvia Plath

E podeis crer que há muito mais vigor

no lirismo aparente

no amante Fazedor de palavra


Do que na mão que esmaga


A ideia é ambiciosa e santa

E o amor dos poetas pelos homens

É mais vasto

Do que a voracidade que vos move

E mais forte há de ser

quanto mais parco


Aos vossos olhos possa parecer.


Poemas de Júbilo, Memória,

Noviciado da Paixão. São Paulo: Globo, 2003


abril 12, 2010

…que mistério tem Clarice?

(…)

Clarice não tinha medo do comum e do banal. Você começa como um “leitor especializado”, aplica teorias, arrisca interpretações, traça paralelos. Avança, aos trancos. Até que, de repente, o livro o derruba. Esse é o momento. Na queda, você se conecta com Clarice. Você deixa de ser um leitor; é mais uma vítima. O livro o submete. O livro o lê.

(…)

Vazio? Quem lê Água viva, que é pura abstração, entende o que tento dizer. Clarice via o abstrato. Ele é o objeto de suas narrativas. Penso em Pollock, em Kandisnky, em Kooning. Penso nas palavras de Malevich: “Eu me transformei no zero da forma”. Tento ir mais longe: volto aos românticos, com sua paixão pelo obscuro e seu projeto audacioso de buscar a luz na sombra. Penso nas palavras de Guillaume Apollinaire a respeito dos jovens pintores de seu tempo: “Eles são, em certo sentido, matemáticos sem saber, mas ainda não abandonaram a natureza, e a examinam cuidadosamente”.

Clarice foi uma grande leitora do mundo. Todo escritor, mesmo o medíocre, é. Um escritor não tem outra coisa para trabalhar, senão a própria vida. Pode se debruçar sobre a literatura do passado, pode fazer experiências formais e se entregar a uma “literatura culta”, pode tudo, mas estará sempre defrontado com a realidade. Clarice, porém, lia o mundo não na visão chapada das grandes paisagens, ou dos personagens “perfeitos”, mas nas entrelinhas. Via “entre”. Perfurava o real, cavando ali onde, quase sempre, por preguiça, por desatenção, por medo, nos detemos.


Trechos do texto Clarice no metrô, de José Castello

Publicado no Jornal Rascunho

http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=3&lista=1&subsecao=11&ordem=3338


abril 10, 2010

Argentina realiza primeiro casamento entre mulheres no país


Duas mulheres, ambas de 67 anos, se casaram nesta sexta-feira (9) em um cartório em Buenos Aires, no primeiro casamento entre mulheres da Argentina.

A argentina Norma Castillo e a uruguaia Ramona “Cachita” Arévalo, que namoravam há 30 anos, casaram-se depois de conseguir uma autorização judicial concedida pela magistrada Elena Liberatori.

As duas são ativistas do coletivo 100% Diversidade e Direitos, e Norma é titular do Centro de Aposentados Porta Aberta à Diversidade, organizações que fazem parte da Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais, cujos porta-vozes confirmaram à Agência Efe a celebração da união.

da Efe, em Buenos Aires (Argentina)



abril 4, 2010

Apesar de achar o rito interessante, por sua capacidade de recuperar e reatualizar o tempo e de nos devolver à ideia de sagrado, bem como de nos incitar à reflexão, os discursos e práticas religiosas me incomodam a ponto de eu não encontrar na simbologia da Páscoa uma contemporaneidade afetiva e substancial. Não apenas pelos desvarios consumistas que fazem dos ovos de chocolate a única possibilidade de confraternização, mas pela realidade contundente dos fatos.

Defender a prática da pedofilia; acusar e envergonhar as vítimas; oprimir os pensadores e opositores; condenar o uso da camisinha, a legalização do aborto e do casamento entre homossexuais são condutas rotineiras da igreja católica – alicerçada em escândalos abafados e numa história sangrenta.¹

O cardeal Alfredo Ottaviani, segundo a CBS, redigiu um documento, em 1962, afirmando que seria expulsa da igreja qualquer pessoa que falasse dos diversos casos de abuso sexual cometidos por sacerdotes. Em 2003, Jacques Daheron foi condenado, na França, a 6 anos de prisão por violar e agredir 3 jovens. Dom Luciano, bom cristão italiano, pagou garotos de 15 anos por serviços sexuais, os mais diversos – ele é muito criativo! Padres irlandeses não ficam atrás. Os de Boston, apesar de pedófilos compulsivos, pregam, em liberdade, a moral e o bem comum. O reitor alemão do respeitável colégio jesuíta Canisius admitiu que muitos alunos sofreram abusos sexuais nas décadas de 70 e 80. Não diferente dos meninos cantores de Regensburg, coro dirigido até 1993 por Georg Ratzinger, irmão de Bento 16 – um papa de olhar frio e rude sobre um mundo desprotegido, faminto e em constantes conflitos. Além de ter sido uma espécie de inquisidor do brilhante Leonardo Boff, o papa vocifera contra o uso da camisinha, é condescendente com os crimes dos sacerdotes e não se solidariza com as vítimas. Há no vaticano até quem negue o holocausto!!!

No Brasil, há uma pequenina igreja progressista, que faz um trabalho efetivo, íntegro e fundamental, contra uma esmagadora maioria retrógrada, com seus bancos de dízimos, os supermercados da fé.² Quando não padres pops – cantores mercantis que sequer se envergonham de parcerias duvidosas, como a feita com o traficante Belo – , padres corruptos e coniventes com a violência. Um bom exemplo é o arcebispo de Olinda, Dom José Cardoso Sobrinho, que condenou os médicos por fazerem o aborto de gêmeos que salvaria a vida de uma garota de 9 anos, violentada pelo padrasto. Não contente, excomungou a mãe da menina e abençoou o estuprador.

Sob a alegação de salvar vidas, a prática do aborto e as pesquisas com células-tronco são rechaçadas. Curiosa alegação da responsável por queimar viva a santa Joana D’arc, entre tantas mulheres medievalmente denominadas bruxas, e perseguir tanto Galileu quanto outros importantes pensadores.

Estranha instituição que não zela pelos miseráveis – simplesmente 1/3 da humanidade –, que não se moderniza, que não aceita a comprovada contribuição social das mulheres, que demora séculos para pedir perdão aos índios – vítimas de um genocídio catequizador – que condena o prazer e o amor, que insiste no tabu da virgindade, que transforma a fé em medo. Estranha e absurdamente distante da figura humilde e singela de Jesus.

No vazio desse domingo chuvoso, a dúvida ecoa e incomoda: o que comemoraríamos?


¹Isso sem me referir aos escândalos de outras instituições religiosas, como a Universal e Renascer, motes para um próximo texto.

²JABOR, Arnaldo. Artigo sobre o arcebispo de Olinda, veiculado no Jornal Globo.


março 5, 2010

Alice me perguntou o que fazer no final de semana,

que, segundo ela, já chega  se espreguiçando,

meio chuva meio sol.

…?

Desacelerar.

Roçar o ócio.

Ler Sonhos de Einstein, e contemplar as texturas do tempo.

Delicado e instigante foram os termos utilizados por Salman Rushdie para descrever o texto do físico, professor e escritor Alan Lightman. E é exatamente assim.

Saiu pela Companhia das Letras, em 1993. Com tradução de Marcelo Levy.

Ouvir Tempo de samba, de Leo Minax e Chico Amaral. Está no disco AULANALUA.  Delicioso casamento de letra e melodia. O ritmo do tempo é temperado pelo tic-tac da aliteração em t. Canção linda-leve, de ouvir muitas vezes.

Também dele, só que em parceria com Jorge Drexler, ouvir Causa e efeito, do cd STEREO13.

O site é http://leominax.com/

Sentir o cheiro da chuva.

Beijar na boca.

Ser O equilibrista*, de Eucanaã Ferraz

Traz consigo resguardada
certa idéia que lhe soa
clara, exata.

No entanto, hesita: que palavra
a mais bem medida e cortada
para dizê-la?

Enquanto não lhe vem o verso, a frase, a fala,
segue lacrada a caixa
no alto da cabeça.

*Está em Rua do mundo. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007.

Ou no site http://eucanaaferraz.com.br/



janeiro 30, 2010

PEDRA D’ÁGUA, ABISMO, PEDRA-FERRO

Como te chamas? Para que eu possa ao menos

Soletrar teu nome, grudada à tua fundura.

Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes.

Antiquísssima ave, marionete de penas.

As asas que pensou lhe foram arrancadas.

Lavado de luzes, um deus me movimenta.

Indiferente. Bufo.

Dá-me a via do excesso. O esturpor.

Amputado de gestos, dá-me a eloquência do Nada

Os ossos cintilando

Na orvalhada friez do teu deserto.

3 poemas de Hilda Hilst.


janeiro 26, 2010

Quero possuir os átomos do tempo

Clarice Lispector



janeiro 10, 2010

nÃo dá para comEçar o ano em marcha à ré,

bajulando olhares caducos e posTuras engessadas…

beiJo molhAdo e bom bocado de WaLy:


minha boca saliva porque tenho fome

e essa fome é uma gula voraz

que me traz cativo

atrás do genuíno grão da alegria

que destrói o tédio

e restaura o sol

no coração do meu corpo

Waly Salomão

O que o poeta pretende é desentranhar a fúria dionisíaca do ventre sintaxeal, ou seja, é necessário “inventar metas para atravessar, ver através”, perambular por entre, sob e sobre as fendas da existência; tornando-se nômade e assustadoramente demolidor (“guerreiro”), recolhendo e distribuindo errâncias e delírios, sem bastar-se a si mesmo.

Trecho do livro O amante da algazarra. Nietzsche na poesia de Waly Salomão. De Flávio Boaventura. Editora UFMG, 2009

W.S.: CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY

Waly Salomão

A memória é uma ilha de edição – um qualquer

passante diz, em um estilo nonchalant,

e imediatamente apaga a tecla e também

o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser

levado junto de roldão.

Onde e como armazenar a cor de cada instante?

Que traço reter da translúcida aurora?

Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?

O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire

o significado estrito

que se deseja imprimir nela.

Tampouco é uma estória em que cada minúcia

encerra uma moral.

Ela é recheada de locais de desova, presuntos,

liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas,

apagamentos de trechos, sumiços de originais,

grupos de extermínios e fotogramas estourados.

Que importa se as cinzas restam frias

ou se ainda ardem quentes

se não é selecionada urna alguma adequada,

seja grega seja bárbara,

para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,

ainda hoje será esquecido

o que traz a marca d’água d’hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto

os cães de fila do tempo fazem um arquipélago

de fiapos do terno da memória.

Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.

Numerosas crateras ozonais.

Os laços de família tornados lapsos.

Oco e cárie e cava e prótese,

assim o mundo vai parindo o defunto

de sua sinopse.

Sem nenhuma explosão final.

Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.

Um, sem nome e com vontade aguada,

ergue este lema como uma barragem

anti-entropia.

E os dias sucedem-se e é firmada a intenção

de transmudar todo veneno e ferrugem

em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.

Ao prazer do bel-prazer,

como quem aperta um botão da mesa

de uma ilha de edição

e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo.

Corrigindo:

o humano fado.

A trama da vida é prolífica de sinais e o poeta é uma espécie de flâneur que espatifa o eu fechado, movido pela pulsão de fuga rumo a outros. Rumar, enfim, em busca de identificações múltiplas, tornar-se nômade “SOB O SIGNO DA DEVORAÇÃO”, exaltando a incompletude permanente da vida.

Trecho do livro O amante da algazarra. Nietzsche na poesia de Waly Salomão. De Flávio Boaventura. Editora UFMG, 2009




dezembro 23, 2009

Voltei para o antes.

Carregava comigo minha antiga infância.

E o menino que morava em mim não mais travou suangua.

Continuou a me interrogar sobre coisas impossíveis de responder.

Meu coração, pesado de perguntas,

se agitava, festivo,

ao supor que o tempo é um saboroso presente.

Bartolomeu Campos de Queirós