É bem típico do pensamento-máquina-mercado diminuir a importância da literatura.
Feito robôs as escolas querem seus alunos.
Interdisciplinaridade é piada de corredor.
Quando um professor, de fato, ousa, é rechaçado e ridicularizado.
E a literatura é ainda vista como historiografia “didática”. Correntes nas prateleiras, tempo demarcado – como se não coexistissem Cruz e Souza e Pedro Kilkerry, Gilka Machado e Oswald de Andrade; como se não coexistissem Clarice Lispector e Haroldo de Campos, Caetano Veloso e João Cabral de Melo Neto; como se não coexistissem Ferréz e Chico Buarque de Holanda. Não, a escola congela os autores numa linha de tempo que só existe dentro da escola.
É bem típico de quem teme se conhecer ou mesmo se reconhecer na brutalidade dos gestos e guerras anteriores.
É bem típico de quem teme espelhos.
Vale lembrar, a escola não quer alunos em crise.
E a escola não quer alunos mutilando velhos preceitos, indagando cartilhas, bisbilhotando Allen Ginsberg ou Arthur Rimbaud. Ela ainda insiste no patriotismo chato de Olavo Bilac e, quando Carlos Drummond de Andrade, nunca A Rosa do Povo, mas um discurso de mineiridade que passa longe de sua obra, mas legitima o discurso comportadinho das pedagogas, supervisoras de ensino (!!!!)
O fato é que ler é perigoso demais, até para a escola.
O fato é que muitos e muitos professores de português também não são grandes leitores.
O fato é que reina uma lógica linguística sobre o ensino de literatura. Nada contra os linguistas, ao contrário, são fundamentais inclusive para a mudança de paradigma do ensino da língua portuguesa no Brasil. Mas não dá para reduzir nem condensar a complexidade da literatura. Não dá para trabalhar poema como se trabalha artigo de opinião. Não dá para fingir que a lírica de Camões não existe porque “é muito difícil”. Há um discurso invisível e contagioso de que não é tão importante assim ensinar literatura, e que devem ser aplicadas à interpretação de textos canônicos as mesmas regras utilizadas para os informativos, injuntivos e jornalísticos. De que qualquer um está pronto para o ofício. Perpassa os comentários de coordenadores e muitos professores a ideia superficial de que os estudos da linguagem dão conta do recado, formam bons leitores. Será que o aluno que sabe reconhecer a fina ironia machadiana não está mais preparado para ler articulistas como Luis Pondé? Não é crucial saber identificar e compreender as metáforas, metonímias e/ou alusões em uma crônica de jornal? Será que a literatura não pode funcionar como parceira da linguística, gramática, história, geografia? As fronteiras são tão estanques assim? Que prática escolar é essa que valoriza o gramático de um só autor? Que treina frases destacadas do contexto? É a gramática de qual texto? De qual contexto cultural e histórico? Que prática escolar é essa que entende literariedade e sinestesia como conversa só para entendidos, viajantes? E que prefere as professorinhas que nunca ouviram falar em Mia Couto, Daniel Galera e Milton Hatoum? Que prática escolar é essa que trata a literatura como frágil enfeite de cristal? E cristaliza asneiras?
“Por que você não cobra uma fichinha de leitura sobre Dom Casmurro, valendo 15 pontos?
“Ah! mas para que trabalhar O vendedor de Passados, de Eduardo Agualusa? Isso não é literatura brasileira!!! Qual a importância pedagógica?”
“Dias Gomes? Que mania de enxertar dramaturgia. Ninguém gosta de ler teatro, só você!!!!”
“Por que exibir Volver? Pedro Almodóvar é subversivo, imoral. ”
“Ai, vamos trabalhar um livrinho mais fácil? Quem é essa Lygia Bojunga?”
Vera Casa Nova disse certa vez, brava-performática, que os professores de português não sabem ler poesia. E espalhou Arnaut Daniel, Sousândrade, Wang Wei pela sala para lermos em voz alta – foi incrível! Gozo coletivo daqueles 5% que conseguiram ler e reler e ouvir a pulsação de cada verso___________.
Texto de gozo:
aquele que põe em estado de perda,
aquele que desconforta,
faz vacilarem as bases históricas,
culturais, psicológicas do leitor,
a consistência dos seus gostos,
de seus valores e de suas lembranças,
põe em crise sua relação com a linguagem.*
Na leitura,
todas as emoções do corpo estão presentes,
misturadas, enroladas:
a fascinação, a vagância,
a dor, a volúpia;
a leitura produz um corpo transtornado.**
A grande maioria ficou com aquela cara de doninha na janela. A sala tinha uma maioria de meninas casadoiras, leitoras recatadas de Adélia Prado. Lembro-me de ouvir frases do tipo: “Essa mulher é maluca!!!” “Você viu a roupa dela??!!!!” “Não dá conteúdo!!!!…” Curioso, elas estão todas no mercado, senhoras absolutas do ensino fundamental e médio. Cúmplices dessa tirania velada, enfeitada de psicologia e sociologia educacional. É impressionante, nunca leram Freud, Lacan ou Marx. Apoiam-se numa leitura esgarçada de Piaget. Esquecem-se da contribuição milionária de todos os erros. (Ah! não devem ter xerocado esse capítulo.)
Os alunos geniais, por sua vez, quase todos, desistiram da licenciatura. Foram enriquecer outras áreas. Ganham mais e são mais reconhecidos.
Não contente com os problemas educacionais já existentes, a UFMG resolveu limar a prova de literatura do seu vestibular, corroborando o senso comum de que literatura é perfumaria.
Sabemos que muitos alunos só vão ler, de fato, no ano de vestibular, até porque os pontos de caderninho e as fichinhas coladas da internet salvam a média, garantem a nota da mediocridade coletiva – o que comprova os altos índices de analfabetos funcionais!
Ao contrário do que muitos vociferam, a exigência desperta excelentes leitores, adormecidos por essas práticas pedagógicas rasteiras. Já presenciei cenas comoventes! No vestibular de 2006, quando Grande Sertão Veredas entrou na lista da UFMG, os alunos (e, infelizmente, muitos professores), num primeiro momento, entraram em pânico, desesperados e impressionados com o tamanho do livro!!! Depois, vieram o tédio e desânimo com as 200 primeiras páginas. Mas, os que corajosamente as ultrapassaram vivenciaram uma verdadeira epifania. Os plantões ficaram lotados, os alunos queriam comentar e discutir o livro. Aquele frescor juvenil da descoberta tomou salas e corredores, só se falava em Diadorim e Riobaldo, e nas imbricações da trama. Lembro-me de uma aluna em especial, a Fernanda, com seus olhos de ressaca, que se iluminou com a metáfora do “ser tão” e começou a discutir o livro inclusive na terapia, em busca de autoconhecimento.
A literatura desperta, acorda, tira-nos da acomodação enfadonha e improdutiva.
E assusta, porque coloca em xeque os moldes convencionais da grande maioria das instituições escolares do país – salas abafadas, feias, sem graça; carteiras alinhadas; alunos neutralizados, alienados e “protegidos”; professores subservientes, burocratas, infelizes…
* Barthes: o demônio da teoria, Vera Casa Nova.
**Da leitura, Roland Barthes.