Bom bocado de Manuel Bandeira:
A realidade e a imagem
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva.
E desce refletido na poça de lama no pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.
O rio
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
A lua
A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.
O mar jaz como um céu tombado.Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente, louca, emerge
Das ondas-nuvens, toda nua.
Morada Terrestre
Jorge Carrera Andrade
Tradução: Manuel Bandeira
Habito um castelo de cartas,
Uma casa de areia, um edifício no ar,
E passo os minutos esperando
O desmoronamento do muro, da chegada do raio,
O correio celeste com a última notícia,
A sentença que voa numa vespa,
A ordem como um látego de sangue
Dispersando ao vento uma cinza de anjos.
Então perderei minha morada terrestre
E me encontrarei nu novamente.
Os peixes, os astros,
Remontarão o curso de seus céus inversos.
Tudo o que é cor, pássaro ou nome,
Volverá a ser apenas um punhado de noite,
E sobre os despojos de cifras e plumas
E o corpo do amor, feito de fruta e música,
Baixará por fim, como o sonho ou a sombra,
O pó sem memória.