– Omissão e covardia contribuem para a intolerância.
e brutalidades cotidianas –
Alguém pensa que os horrores existem sozinhos,
e diz a sociedade, o grupo, a organização, o sistema…
Ora, e nós não somos a sociedade?
Alguém se calou diante dos campos de concentração.
Não ouviu barulho? Tiro? Grito? Bomba? Trem?
Não viu fumaça? Movimento? Soldados? Cadáveres?
Não sentiu o cheiro dos corpos apodrecendo no pátio?
Alguém deu coronhadas, em nome do seu país, até a criança de joelhos sangrar.
Alguém estuprou as adolescentes do país rival.
Alguém humilhou soldados de guerra e os barbarizou.
Alguém fuzilou homens mulheres crianças
e passou as mãos nos lábios e dormiu à noite e deu risada no dia seguinte.
E tomou um trago de vodca.
Alguém gritou no edifício: é judeu, levem-no.
Acreditava em quê?
Delatou-o como quem enxuga as louças e varre a poeira do chão.
Alguém expulsou o filho de casa porque ele gostava de outro rapaz
e lavou as mãos.
E discursou em nome da moral e da ética,
e deu um beijo de boa noite na esposa muda, inexata.
Alguém saiu em defesa dos militares
e entregou padres suspeitos de comunismo.
E fez pose de patriota, e sentiu-se temente a Deus,
e dobrou a esquina, e trabalhou mais de oito horas por dia
por um salário medíocre,
até morrer de velho,
sem culpa ou remorso.
Alguém viu e fez que não.
Alguém calou.
E frequentou a missa, colocou a vasilha de sopa na mesa do jantar, criou os filhos,
abotoou a camisa do marido passada a ferro quente.
Alguém recebeu propina e gostou,
e recebeu de novo, e gostou ainda mais.
Comprou uma mansão em Brasília, uma em Salvador,
um apartamento em Paris, algumas cabeças de gado…
alguns atiradores profissionais e duas mulheres pralém da oficial –
cúmplice-calada, no seu canto, com cara de vítima e roupa de grife.
Alguém bebeu para esquecer.
Alguém vendeu a bebida.
Alguém fechou a janela pra não ver.
Ligou a tv; xingou o governo, o repórter, a mãe do juiz.
Dormiu com sede de justiça, acordou pronta para o batente.
Falou mal da colega, destratou o porteiro,
comprou um cd pirata da Ivete Sangalo, e
uma sandália de nove e noventa, carismática, felicidade-axé, não enxergou a faxineira,
trabalhou até 19 horas,
e trepou com o marido da melhor amiga.
Alguém comeu o pão que o diabo amassou.
Alguém ficou sem comer.
Alguém não ouviu os murros socos pontapés
gritos, mais tarde urros sussurros gemidos
e um silêncio sujo de sangue.
Alguém não viu o olho roxo, os ombros caídos e a vontade de não existir.
Alguém não viu a menina-acuada-triste-soturna-calada
e a boneca sem cabeça, com uma só perna e os braços revirados,
largada no sofá.
Alguém não percebeu seus pesadelos e seus olhos ensimesmados
Alguém viu a menina com medo temor pânico
e gozou
Alguém não viu sua filha vestida de medo e os olhos fixos no instante.
Alguém.
SILÊNCIO!