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Projetar show gratuito nas praças é importantíssimo, todos sabemos.
Só não entendo por que a qualidade do som vira um detalhe insignificante, quando deveria ser atentamente cuidada. Afinal, só assim chega ao povo a voz do artista.
Ontem, ouvir o agogô foi missão impossível.
Nenhum técnico conseguiu equalizar o microfone de Paulinho da Viola.
Ainda assim, ouvir, em meio ao eclético público, Solidão é lava que cobre tudo/Amargura em minha boca/Sorri seus dentes de chumbo… me arrepiou até a nuca.
Tia Surica e toda a velha guarda da Portela: samba com perfume de alecrim…
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Fotografia de Dora Araújo
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Meu amor mais do que confesso, registrado no nome do meu filho Caê, e nos inúmeros posts dedicados ao poeta, é Caetano Veloso.
Estava mais interessada em ouvir o repertório de Abraçaço do que os clássicos, sem dúvida…
Mas, curiosamente, aquele momento voz e violão, com as canções de sucesso, não foi tedioso.
Foi vibrante sentir o público cantando (algumas pessoas de olhos fechados, outras, vidradas no palco) os emblemáticos versos. Alguns já tão populares que soaram como se fossem provérbios, como se fossem nossos…
(E não são?)
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
É que Narciso acha feio o que não é espelho
Lua de São Jorge, cheia, branca e inteira
Oh, minha bandeira solta na amplidão
Para desentristecer, leãozinho
O meu coração tão só
Basta eu encontrar você no caminho
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Diga, espelho meu, se há na avenida alguém mais feliz que eu!
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Essa força do cancionista de nos representar simbolicamente é o grande barato. E tudo soa como se fosse tão simples!… Como se não houvesse a transpiração cabralina aliada à intuição santoamarense…
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Dois irmãos
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Delírio coletivo nos versos:
Tudo, tudo na Bahia/Faz a gente querer bem/
A Bahia tem um jeito.
Caetano Veloso era a Bahia ali.
A banda Cê, ora londrina, ora angolana, também tem um jeito!
A guitarra de Pedro Sá é crua e percussiva, marcou o samba de roda no dedilhado e nos fez pisar no chão devagarinho…
Caê colocou a poesia concreta dos irmãos Campos na boca de cada um, melodiosa, um curso a se desenhar na multidão, entre luzes azuis que cruzavam os feiosos edifícios atrás da histórica estação. E fez a praça inteira gritar o nome de Tieta, nos devolvendo nua-inteira a personagem de Jorge Amado.
Mais de 70 anos, sua voz límpida, luminosa, com sua força estranha, nos mostrou o que já sabíamos: ele é o dono da festa, é a sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia…
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