maio 22, 2011

Quando soube que a Adriana Calcanhotto ia gravar um disco de samba, minha primeira reação foi de desânimo e desconfiança. Não porque não goste de samba, nem mesmo porque considere um movimento revisionista, como insiste em afirmar o Lobão, mas porque há tantas cantoras bacanas que gravaram tão mal o samba. Algumas ralentaram e ralentaram e ralentaram até chatear, outras encheram a síncope de vibratos insuportáveis. Eu acabei me flagrando com meus antigos cds de Bob Dylan e com os recentes do Beirut e Karen Elson. A mpb ficou uns meses na gaveta.

Depois, já na ansiosa espera pelo disco, ouvi algumas vezes a belíssima gravação de Mulato Calado, que está em Senhas, de 1992.

O micróbio do samba é um cd autoral e inteligente, revela a tolice da minha reação imediata.

Me ganha pelo mínimo, nada sobra…voz delicada, caixinha de fósforo…e uma malemolência (ai) de quem tem o que dizer; ah! pode se remoer! Afinal, ela sabe mesclar o violão bossanovista às palmas do samba de roda da Bahia, sabe entrelaçar as vozes intertextomusicais da tradição e subverter os clichês do malandro enganador, como nos versos ele acredita que me engano/ pensa que sabe mentir, o homem que eu amo, da canção Mais perfumado, dedicada a Thais Gulin – cujo trabalho é também incrível.

No cd, a perspectiva feminina mais que pulsa, lateja. Noite alta é o dia – espaço e tempo de uma mulher que sabe o que quer e não cai no juízo machista de ninguém. Uma protagonista avisa: eu não sou mais quem/ você deixou, amor/ vou à Lapa/ decotada/ viro todas/ beijo bem. Homoafetiva, a outra repara: a sua nova namorada, querida/ pode ser linda e safa/ mas ela não samba/ ai, ela não quebra/ ela não balança. Certeira, a antiamélia encerra: agora tá na minha hora/ eu vou passar uns tempos em Mangueira/ não chora, neguinho, não chora/ o meu coração é da estação primeira.

Joyce, com seu inseparável violão, foi uma das precursoras em dizer-cantar a mulher na primeira pessoa, em arrancar a voz passiva tão grudada no imaginário dos cancionistas. Hoje, são inúmeras, Céu, por exemplo, desconstrói a lenda do príncipe, joga-lhe um quebrante e o devolve à condição de sapo. (Na voz de Cássia, via Cazuza, o príncipe virou um chato!) Não mais apenas o universo do homem sentado a ver a garota de Ipanema passar, visto que ele pode se transformar no menino bonito que cai na dança e cai na roda… Não só a bandeja de chá de Adriana, como a percussão prato e faca de Moreno Veloso fazem ferir de morrer o homem que, por você [mulher], largava tudo/ arranjava o que fazer/  até voltaria cedo e deixava de beber// por você seria aquele que você mandasse ser/ nunca chegaria tarde com a barba por fazer.

Infectada, laialaiá e cavaquinho, contrabaixo de Alberto Continentino, despeço-me com a letra-poema que mais me pega…

aquele plano para me esquecer

que tudo isso ainda vai passar
se deslocar no tempo, esmaecer
deverá desbotar, desimportar
então seu plano para me esquecer
esqueça

que  aquele amor, aonde quer que esteja
se bulir, vai ver, inda lateja
e se, no fim, no fundo, permaneça
aquele plano para me esquecer
esqueça

Marcelo Moutinho analisou com maior riqueza de exemplos essa ótica feminina. Vale ler:

http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?type=5&language=pt_BR


maio 17, 2011

Gosto muito do trabalho da Maíra Mano, levei alguns de seus textos para a sala de aula e os debates foram muito intensos e produtivos. Vários alunos, inclusive, tornaram-se leitores de seu blog.

No Polo, guardo o olhar atento e marejado da Daniela.  No Plug Minas (minha brevíssima e inesquecível parceria com a Flávia Peret), articulei o artigo Para Igreja, mulheres bispas são iguais ou piores que padres pedófilos, de Maíra, ao pungente texto As idades de Rosa Maria, de Eduardo Galeano. A aula pegou fogo! Os alunos, queridos, certeiros e combativos, envolveram-se na discussão com tamanha consistência e vivacidade, que eu saí de lá comovida, esperançosa.

Não conheço Kubík Mano pessoalmente; propus a entrevista por email; ela, para a nossa felicidade, aceitou. 

Maíra Kubík Mano é jornalista.

Doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp, estuda a relação entre a mídia e as mulheres.

Foi editora do jornal Le Monde Diplomatique Brasil

e editora-assistente da revista História Viva, além de trabalhar como freelancer para vários veículos de comunicação.

Tem pós-graduação em Gênero e Comunicação no Instituto Internacional de Periodismo José Martí, em Havana, Cuba.

É autora do blog Viva Mulher: http://viva.mulher.blog.uol.com.br/

1-Máira Mano, gostaríamos de agradecer sua delicadeza em conceder esta entrevista. Somos leitores e divulgadores do seu blog. Conte para nós como surgiu a idéia de fazer um blog sobre a temática feminina?

A idéia surgiu a partir de uma militância prévia na área. E a militância, claro, de uma sensibilização pessoal em torno do tema. Eu acho que as lutas sempre decorrem de uma situação de opressão em que as pessoas se veem movidas a sair de seus lugares de conforto para buscar mudanças sociais. Assim acontece com a questão de gênero. Eu me sentia e me sinto subjugada pela simples razão de ter nascido com determinadas características físicas que já traziam em si séculos e séculos de exploração. O blog foi decorrência de toda essa compreensão e, mais do que isso, dessas sensações.

2-No ciberespaço, cada sujeito é um potencial criador e gerador de informação ou de desinformação. Até que ponto a heterogeneidade do discurso é positiva? Será que a sociedade brasileira está preparada para filtrar informações, ou ao menos pesquisar as fontes? Você acredita, por exemplo, no poder de transformação do blog e das redes sociais?

Eu acho que a informação deve ser sempre livre e que todos e todas têm direito à comunicação. É claro que salvo a exceção de crimes de ódio, racismo, homofobia, misoginia etc. A filtragem das informações depende do bom senso de cada um, creio que não devemos subestimar as pessoas. O importante é disponibilizar dados, análises, reportagens, opiniões e vídeos que possam conformar essa pluralidade e possibilitem a disputa de idéias. Eu acredito que as redes sociais e blogs são uma ótima ferramenta no sentido de democratizar a comunicação – uma vez que possibilitam a livre expressão – e, também, em certa medida, de mobilização. Mas ainda vejo como fundamental a interação que vai além do anonimato da internet ou de quem ficar o tempo todo colado na cadeira em frente ao computador. O contato cara a cara continua importantíssimo para qualquer tipo de mudança na sociedade, assim como a ocupação das ruas.

3-O presidente da Câmara dos deputados, Marcos Maia (PT/RS), afirmou, em entrevista concedida ao programa Roda Viva (TV Cultura), que ainda é cedo para que temas como união homossexual e aborto sejam debatidos pelo Congresso. Afirmou ainda que esses assuntos não serão prioridade em 2011. Você concorda? Por quê?

Eu queria discordar totalmente dele, mas concordo com a parte em que ele diz que isso não será debatido, porque é quase óbvia. Só não concordo que não seja prioridade, pelo contrário. Tanto é prioridade que o Supremo acaba de reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Essa demanda já existia na sociedade e vinha sendo negligenciada. O mesmo para o aborto: o SUS calcula que são realizados cerca de 1 milhão de abortos por ano no Brasil. Dá para negar que isso é uma realidade e que temos que lidar com ela? Claro que não! Mas continuamos fechando os olhos. E o Brasil segue longe de ser um país de fato laico, como pressupõe a sua Constituição: ainda temos, por exemplo, crucifixos e demais símbolos religiosos – notadamente católicos – em tribunais e delegacias. É preciso mudar isso, ou centenas de mulheres continuarão morrendo todos os anos em decorrência de interrupções voluntárias de gravidez.

4-A violência contra a mulher é uma realidade em todo o mundo. Uma mulher é violentada nos EUA a cada dois minutos, menos de 37% dos casos vai a julgamento, apenas 5% dos criminosos passam algum tempo na cadeia. A África do Sul enfrenta o problema dos “estupros corretivos”.  Em alguns países, persiste a barbaridade da mutilação genital. O tráfico de mulheres atinge números cada vez maiores. No Brasil, os espancamentos, estupros e abusos são recorrentes. Ainda há diferenças salariais e assédio sexual no trabalho; as mulheres são vítimas de abuso até nas delegacias, onde, em tese, deveriam ser protegidas. Diante das alarmantes estatísticas e desse quadro de horrores, o que fazer? Como atuar?

Eu acho a denúncia um instrumento fundamental. Só que ela deve vir associada a políticas públicas de prevenção à violência e de apoio às mulheres que sofrem esse tipo de situação. Nesse sentido, campanhas de esclarecimento e de apoio são muito importantes. É preciso caracterizar a violência. Assédio sexual no trabalho é violência. Palavras também o são. Tapas, estupros, tudo isso tem que ser tipificado como violência, para que as mulheres não tenham dúvidas do que estão sofrendo. Devemos ainda nos preocupar – e muito – com aquela mulher que faz a denúncia contra seu companheiro, irmão, pai ou patrão. Ela deve se sentir e estar de fato segura. Como você disse, muitas vezes nem mesmo na delegacia ela é devidamente amparada. Por isso, temos que fiscalizar permanentemente os órgãos responsáveis. Em suma, é preciso que não nos calemos e não permitamos a impunidade.

5-Percebemos que há uma banalização da violência nos lares brasileiros, o que dificulta qualquer processo de transformação. Como o ser humano é complexo (pode ser num momento afetuoso e em outro extremamente agressivo) e é da família, as humilhações ou mesmo os abusos sexuais e psicológicos são aceitos com uma falsa tranquilidade. São, na maioria dos casos, silenciados. Grande parte das famílias brasileiras confunde passividade com pacifismo. E finge não enxergar que a violência psicológica, caracterizada por rejeição, discriminação e humilhação, causa danos irreversíveis. Como lidar com essas situações? Como chegar aos lares para conscientizar as famílias?

Eu acho que a resposta é semelhante àquela acima. Precisamos nos mobilizar para que essa situação mude. De novo: temos que caracterizar a violência para que ela seja percebida enquanto tal. Uma das maiores violências que a família traz aos indivíduos, por exemplo, é o cerceamento da liberdade, e pouco ou nada se discute sobre isso. Ao mesmo tempo, experimentamos um período histórico de muitas transformações nos lares. Não temos mais a figura paterna como chefe de família único. A criação dos filhos é, em tese, compartilhada – em tese porque sabemos que a mulher é a grande referência. Além disso, a família monoparental sustentada por mulheres cresce a cada dia. Temos que ter em conta essa realidade para conseguir lidar com os diferentes tipos de violência. Talvez – e isso é apenas uma suposição – a violência hoje também decorra de uma tentativa forçada de manter o controle da família nos moldes antigos, algo que não se encaixa mais.

6-Balanço do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aponta que, em quatro anos, 9.715 pessoas foram presas em flagrante com base na Lei Maria da Penha, que pune a violência doméstica contra a mulher. Os dados são parciais, visto que o Conselho ainda não possui informações detalhadas de todas as varas e juizados especializados no país. Sabemos que há lentidão nos processos, há lacunas na lei e pouquíssimas delegacias da mulher, principalmente no interior do Brasil.  Dilma Roussef afirmou no programa “Café com a Presidenta” que está preocupada com os índices de violência no Brasil e que quer garantir o rigor da Lei Maria da Penha. Os profissionais de saúde, por exemplo, que não notificarem os casos de agressão serão punidos. Mas fica a dúvida, como fiscalizar? O que poderia ser feito para minimizar as lacunas e a impunidade dos agressores?

A fiscalização deve ser feita pela própria sociedade e pelo poder público. Os dados provam que não basta fazer uma lei, é preciso de todo um arcabouço por trás para colocada em prática. Por exemplo: delegacias da mulher funcionando plenamente, tribunais ágeis, proteção integral para quem dela precisar, casas-abrigo, apoio psicológico etc. Fiz uma matéria sobre isso que contempla um pouco essa discussão:

http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=739&PHPSESSID=42aea8cb512dc16234fbde253a5e6e7e

7-Em meio à hostilidade machista, resistem figuras como Clarice Lispector, Hannah Arendt e Simone de Beauvoir. Que mulheres inspiraram seu trabalho? Na mídia, quem você destacaria?

Sem dúvida todas elas são inspiradoras, seja pelas obras em si – como Simone e Clarice – ou pelo impacto e espaço que conquistaram – como Hannah Arendt. Mas as mulheres em geral me inspiram. Só de pensar o quanto avançamos nos últimos 50 anos, eu já acho poesia pura. Caminhar pelas ruas e ver, à noite, grupos de mulheres sozinhas, tomando cerveja, vestindo calças e contando umas paras as outras seu dia de trabalho é uma cena e tanto. Acabei de vê-la. Mais de uma vez. E me senti inspirada. Para não causar nenhum tipo de equívoco por ter esquecido alguém importante, cito duas contemporâneas que estou lendo agora e acho mulheres simplesmente fantásticas: Judith Butler e Elisabeth Badinter.

8-Para encerrar, pedimos que indique alguns blogs ou sites da sua preferência e outros que discutam com propriedade a temática feminina.

Eu indico a ONU mulheres e a Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, porque sempre têm notícias e dados interessantes; a Agência de Notícias Patrícia Galvão (www.agenciapatriciagalvao.org.br), um bom resumo do que tem rolado por aí; o blog “Machismo Mata”, uma triste crítica cotidiana à violência contra as mulheres; a articulação Mulher e Mídia, como algo a seguir; as Católicas pelo Direito de Decidir. Enfim, são muitas. Além disso, há blogs ótimos e fundamentais de mulheres muito atentas e preocupadas com essas questões. Basta procurar um pouco.



maio 12, 2011

Devemos celebrar a decisão do Supremo Tribunal Federal de reconhecer a união homoafetiva, que garante a declaração conjunta de Imposto de Renda, pensão, partilha de bens e herança, além de assegurar a manifestação individual da liberdade. A ministra Carmem Lúcia chegou a dizer que devemos repudiar qualquer forma de preconceito, o que se contrapõe às ações de alguns padres, pastores e políticos.

Não podemos nos esquecer de que nosso Estado é laico!

Vamos, hoje, comentar um episódio:

O deputado Jair Bolsonaro não se contentou em agredir negros e homossexuais em rede nacional, mandou espalhar panfletos na porta de escolas criticando o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos do Ministério da Educação e Cultura (MEC).  A luta antigay do deputado beira o ridículo, seus argumentos são sempre vazios e sem qualquer consistência. Defensor da ditadura militar, com o extenso número de mortos, torturados e desaparecidos, e da tradicional família, alicerçada num patriarcalismo historicamente opressor e violento, Bolsonaro chega a associar a homossexualidade à pedofilia. Ora, deputado, como bem afirmou meu amigo Wellington Costa, as estatísticas de pedofilia demonstram que ela acontece em sua maioria dentro das famílias heterossexuais (instituição que tanto defende!), são pais, irmãos e tios que abusam de meninas e, covardemente, silenciam-nas. Além do mais, essa associação que busca colocar a homossexualidade como uma patologia ou perversão é típica da visão equivocada da medicina do século 19, retomada por Hitler para justificar o parágrafo 175 – que levou mais de 100.000 homossexuais aos campos de concentração.

Que bom que o MEC esteja preocupado com a convivência escolar e com o respeito à diversidade, até porque sabemos que a escola – com os recorrentes casos de bullying –  tende a ser o microcosmo de uma sociedade muitas vezes brutal, que espanca e mata impunemente milhares de homossexuais.

A prática política de Jair Bolsonaro – irmanada a uma visão de mundo hitleriana e ditatorial –  é perigosa, não apenas porque desrespeita os direitos humanos e a própria constituição nacional, mas porque evoca a brutalidade e a intolerância.