Gosto muito do trabalho da Maíra Mano, levei alguns de seus textos para a sala de aula e os debates foram muito intensos e produtivos. Vários alunos, inclusive, tornaram-se leitores de seu blog.
No Polo, guardo o olhar atento e marejado da Daniela. No Plug Minas (minha brevíssima e inesquecível parceria com a Flávia Peret), articulei o artigo Para Igreja, mulheres bispas são iguais ou piores que padres pedófilos, de Maíra, ao pungente texto As idades de Rosa Maria, de Eduardo Galeano. A aula pegou fogo! Os alunos, queridos, certeiros e combativos, envolveram-se na discussão com tamanha consistência e vivacidade, que eu saí de lá comovida, esperançosa.
Não conheço Kubík Mano pessoalmente; propus a entrevista por email; ela, para a nossa felicidade, aceitou.

Maíra Kubík Mano é jornalista.
Doutoranda em Ciências Sociais na Unicamp, estuda a relação entre a mídia e as mulheres.
Foi editora do jornal Le Monde Diplomatique Brasil
e editora-assistente da revista História Viva, além de trabalhar como freelancer para vários veículos de comunicação.
Tem pós-graduação em Gênero e Comunicação no Instituto Internacional de Periodismo José Martí, em Havana, Cuba.
É autora do blog Viva Mulher: http://viva.mulher.blog.uol.com.br/
1-Máira Mano, gostaríamos de agradecer sua delicadeza em conceder esta entrevista. Somos leitores e divulgadores do seu blog. Conte para nós como surgiu a idéia de fazer um blog sobre a temática feminina?
A idéia surgiu a partir de uma militância prévia na área. E a militância, claro, de uma sensibilização pessoal em torno do tema. Eu acho que as lutas sempre decorrem de uma situação de opressão em que as pessoas se veem movidas a sair de seus lugares de conforto para buscar mudanças sociais. Assim acontece com a questão de gênero. Eu me sentia e me sinto subjugada pela simples razão de ter nascido com determinadas características físicas que já traziam em si séculos e séculos de exploração. O blog foi decorrência de toda essa compreensão e, mais do que isso, dessas sensações.
2-No ciberespaço, cada sujeito é um potencial criador e gerador de informação ou de desinformação. Até que ponto a heterogeneidade do discurso é positiva? Será que a sociedade brasileira está preparada para filtrar informações, ou ao menos pesquisar as fontes? Você acredita, por exemplo, no poder de transformação do blog e das redes sociais?
Eu acho que a informação deve ser sempre livre e que todos e todas têm direito à comunicação. É claro que salvo a exceção de crimes de ódio, racismo, homofobia, misoginia etc. A filtragem das informações depende do bom senso de cada um, creio que não devemos subestimar as pessoas. O importante é disponibilizar dados, análises, reportagens, opiniões e vídeos que possam conformar essa pluralidade e possibilitem a disputa de idéias. Eu acredito que as redes sociais e blogs são uma ótima ferramenta no sentido de democratizar a comunicação – uma vez que possibilitam a livre expressão – e, também, em certa medida, de mobilização. Mas ainda vejo como fundamental a interação que vai além do anonimato da internet ou de quem ficar o tempo todo colado na cadeira em frente ao computador. O contato cara a cara continua importantíssimo para qualquer tipo de mudança na sociedade, assim como a ocupação das ruas.
3-O presidente da Câmara dos deputados, Marcos Maia (PT/RS), afirmou, em entrevista concedida ao programa Roda Viva (TV Cultura), que ainda é cedo para que temas como união homossexual e aborto sejam debatidos pelo Congresso. Afirmou ainda que esses assuntos não serão prioridade em 2011. Você concorda? Por quê?
Eu queria discordar totalmente dele, mas concordo com a parte em que ele diz que isso não será debatido, porque é quase óbvia. Só não concordo que não seja prioridade, pelo contrário. Tanto é prioridade que o Supremo acaba de reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Essa demanda já existia na sociedade e vinha sendo negligenciada. O mesmo para o aborto: o SUS calcula que são realizados cerca de 1 milhão de abortos por ano no Brasil. Dá para negar que isso é uma realidade e que temos que lidar com ela? Claro que não! Mas continuamos fechando os olhos. E o Brasil segue longe de ser um país de fato laico, como pressupõe a sua Constituição: ainda temos, por exemplo, crucifixos e demais símbolos religiosos – notadamente católicos – em tribunais e delegacias. É preciso mudar isso, ou centenas de mulheres continuarão morrendo todos os anos em decorrência de interrupções voluntárias de gravidez.

4-A violência contra a mulher é uma realidade em todo o mundo. Uma mulher é violentada nos EUA a cada dois minutos, menos de 37% dos casos vai a julgamento, apenas 5% dos criminosos passam algum tempo na cadeia. A África do Sul enfrenta o problema dos “estupros corretivos”. Em alguns países, persiste a barbaridade da mutilação genital. O tráfico de mulheres atinge números cada vez maiores. No Brasil, os espancamentos, estupros e abusos são recorrentes. Ainda há diferenças salariais e assédio sexual no trabalho; as mulheres são vítimas de abuso até nas delegacias, onde, em tese, deveriam ser protegidas. Diante das alarmantes estatísticas e desse quadro de horrores, o que fazer? Como atuar?
Eu acho a denúncia um instrumento fundamental. Só que ela deve vir associada a políticas públicas de prevenção à violência e de apoio às mulheres que sofrem esse tipo de situação. Nesse sentido, campanhas de esclarecimento e de apoio são muito importantes. É preciso caracterizar a violência. Assédio sexual no trabalho é violência. Palavras também o são. Tapas, estupros, tudo isso tem que ser tipificado como violência, para que as mulheres não tenham dúvidas do que estão sofrendo. Devemos ainda nos preocupar – e muito – com aquela mulher que faz a denúncia contra seu companheiro, irmão, pai ou patrão. Ela deve se sentir e estar de fato segura. Como você disse, muitas vezes nem mesmo na delegacia ela é devidamente amparada. Por isso, temos que fiscalizar permanentemente os órgãos responsáveis. Em suma, é preciso que não nos calemos e não permitamos a impunidade.
5-Percebemos que há uma banalização da violência nos lares brasileiros, o que dificulta qualquer processo de transformação. Como o ser humano é complexo (pode ser num momento afetuoso e em outro extremamente agressivo) e é da família, as humilhações ou mesmo os abusos sexuais e psicológicos são aceitos com uma falsa tranquilidade. São, na maioria dos casos, silenciados. Grande parte das famílias brasileiras confunde passividade com pacifismo. E finge não enxergar que a violência psicológica, caracterizada por rejeição, discriminação e humilhação, causa danos irreversíveis. Como lidar com essas situações? Como chegar aos lares para conscientizar as famílias?
Eu acho que a resposta é semelhante àquela acima. Precisamos nos mobilizar para que essa situação mude. De novo: temos que caracterizar a violência para que ela seja percebida enquanto tal. Uma das maiores violências que a família traz aos indivíduos, por exemplo, é o cerceamento da liberdade, e pouco ou nada se discute sobre isso. Ao mesmo tempo, experimentamos um período histórico de muitas transformações nos lares. Não temos mais a figura paterna como chefe de família único. A criação dos filhos é, em tese, compartilhada – em tese porque sabemos que a mulher é a grande referência. Além disso, a família monoparental sustentada por mulheres cresce a cada dia. Temos que ter em conta essa realidade para conseguir lidar com os diferentes tipos de violência. Talvez – e isso é apenas uma suposição – a violência hoje também decorra de uma tentativa forçada de manter o controle da família nos moldes antigos, algo que não se encaixa mais.
6-Balanço do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aponta que, em quatro anos, 9.715 pessoas foram presas em flagrante com base na Lei Maria da Penha, que pune a violência doméstica contra a mulher. Os dados são parciais, visto que o Conselho ainda não possui informações detalhadas de todas as varas e juizados especializados no país. Sabemos que há lentidão nos processos, há lacunas na lei e pouquíssimas delegacias da mulher, principalmente no interior do Brasil. Dilma Roussef afirmou no programa “Café com a Presidenta” que está preocupada com os índices de violência no Brasil e que quer garantir o rigor da Lei Maria da Penha. Os profissionais de saúde, por exemplo, que não notificarem os casos de agressão serão punidos. Mas fica a dúvida, como fiscalizar? O que poderia ser feito para minimizar as lacunas e a impunidade dos agressores?
A fiscalização deve ser feita pela própria sociedade e pelo poder público. Os dados provam que não basta fazer uma lei, é preciso de todo um arcabouço por trás para colocada em prática. Por exemplo: delegacias da mulher funcionando plenamente, tribunais ágeis, proteção integral para quem dela precisar, casas-abrigo, apoio psicológico etc. Fiz uma matéria sobre isso que contempla um pouco essa discussão:
http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=739&PHPSESSID=42aea8cb512dc16234fbde253a5e6e7e
7-Em meio à hostilidade machista, resistem figuras como Clarice Lispector, Hannah Arendt e Simone de Beauvoir. Que mulheres inspiraram seu trabalho? Na mídia, quem você destacaria?
Sem dúvida todas elas são inspiradoras, seja pelas obras em si – como Simone e Clarice – ou pelo impacto e espaço que conquistaram – como Hannah Arendt. Mas as mulheres em geral me inspiram. Só de pensar o quanto avançamos nos últimos 50 anos, eu já acho poesia pura. Caminhar pelas ruas e ver, à noite, grupos de mulheres sozinhas, tomando cerveja, vestindo calças e contando umas paras as outras seu dia de trabalho é uma cena e tanto. Acabei de vê-la. Mais de uma vez. E me senti inspirada. Para não causar nenhum tipo de equívoco por ter esquecido alguém importante, cito duas contemporâneas que estou lendo agora e acho mulheres simplesmente fantásticas: Judith Butler e Elisabeth Badinter.

8-Para encerrar, pedimos que indique alguns blogs ou sites da sua preferência e outros que discutam com propriedade a temática feminina.
Eu indico a ONU mulheres e a Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, porque sempre têm notícias e dados interessantes; a Agência de Notícias Patrícia Galvão (www.agenciapatriciagalvao.org.br), um bom resumo do que tem rolado por aí; o blog “Machismo Mata”, uma triste crítica cotidiana à violência contra as mulheres; a articulação Mulher e Mídia, como algo a seguir; as Católicas pelo Direito de Decidir. Enfim, são muitas. Além disso, há blogs ótimos e fundamentais de mulheres muito atentas e preocupadas com essas questões. Basta procurar um pouco.