julho 28, 2013

As vozes resistem, ecoam sob o sol…

A natureza lunar assusta? Onde mora o espanto?

Quem vai insistir nessa hegemonia surda,

pautada no macho-adulto-branco?

Indiazinha Wewei Asurini, foto de Karina Menezes.

Pintura feita pela avó.

O nevoeiro da vida, foto de Josefina Melo.

Eu mesma deixei de entender a minha substância:

tenho apenas o sentimento dos mistérios que em mim se equilibram.

As palavras que escutava

eram pássaros no escuro

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:

não tenho inveja às cigarras:

também vou morrer de cantar.

MEIRELES, Cecília. Viagem & Vaga Música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 61; p. 16; p. 25.

Olhar, foto de Eva Pinto.

(…)

o sonho balbuciava em nós

seu canto efêmero

o vento e o outono numa solidão

eu te dizia

deixe teus pés nus sobre a terra molhada

uma rua branca

e uma árvore

serão minha memória

dá os teus olhos ao horizonte que canta

minha mão

suspende a cabeleira do mar

e roça tua nuca

mas tu tremes no espelho do meu corpo

nuvem

minha voz

te leva rumo ao jardim de árvores prateadas

 

era uma primavera aberta sobre o céu

ele me deu uma criança

uma criança que chora

uma estrela dividida

e meu desejo se separa do dia

eu o recolho numa folha de papel

e vou esconder a loucura

num rochedo de solidão.

JELLOUN, Tahar Ben.  As cicatrizes do Atlas. Brasília: Editora UNB, 2003. P. 23-25


julho 28, 2013

Acordei com muitas vozes de mulheres retumbando dentro de mim.  

Nações inteiras. Lugares, águas. Jasmim.

E seu hálito de chuva.

Para onde? Fotografia de Eva Pinto.

Mulher Macua, fotografia de Isabel Osório.

Tenho uma voz (…) este é um exercício de vida sem planejamento.

O mundo não tem ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração.

Deixo-me acontecer.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Editora Rocco, p. 22

Nem as estrelas chegam a esses lugares instáveis,

de onda e nuvem, por onde as palavras e os fantasmas

misturam seus olhos, caminhando por dentro de si!

 

Sua sombra, seu rastro,

mesmo sem querer,

por aí ficam também, perdidos.

Expostos.

 

MEIRELES, Cecília. Viagem & Vaga Música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 140.

Olhar, fotografia de Moura.

Sonho, fotografia de Moura.

Evola-se de minha pintura e destas minhas palavras acotoveladas um silêncio que também é como o substrato dos olhos.

Estou transfigurando a realidade

– o que é que está me escapando?

Por que não estendo a mão e pego?

É porque apenas sonhei com o mundo mas jamais o vi.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Editora Rocco, p. 66; p. 60.

 Kamila Kuikuro, foto de Rita Barreto.


julho 27, 2013

Quem você precisa ver-ouvir?

Quem você precisa ver-ouvir?

Quem você precisa ver-ouvir?

Lilika, Kuikuro, fotografia de Rita Barreto.

Alto Xingu!


julho 15, 2013

Ilustração de Evangelina Prieto

Retrato de Menina

Os cabelos, não.
Tampouco olhos.
Nada além do sorriso: pedras
que as palavras atravessam rápidas
como lagartos, muro
onde encostar meu cansaço.

Eucanaã Ferraz, poema originalmente publicado no livro “Martelo”.

Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 1997. 

Ilustração de Gabriel Pacheco

Só a rajada de vento

dá o som lírico

às pás do moinho.

 –

Somente as coisas tocadas

pelo amor das outras

têm voz.

 

Fiama Hasse Pais Brandão


julho 12, 2013

 

Ilustração de Nan Lawson 

Vou apalpando o livro aberto, com cuidado extremo, avaliando as superfícies, reconhecendo o volume deste aparelho cujo funcionamento me é estranho. Meus dedos deslizam pela lombada, à procura de interruptores, percorrem a extensão da capa, indagam mostradores com ponteiros e luzes, passam à contracapa, pesquisam fendas com entradas para cabos, se alongam nos planos laterais das paginas, perscrutando algum visor, algum painel com botões que se possam apertar ou girar.

Numa reentrância quase imperceptível, encontro finalmente a chave. Coloco-a na posição ON. As linhas das páginas começam a se mover. Verifico que o momento não ocorre de uma linha a outra, segundo a dinâmica mais comum do olhar durante a leitura. O fluxo se dá no sentido da extensão de cada linha, como se as páginas fossem compostas de diversos painéis eletrônicos horizontais, exibindo palavras que, oriundas não se sabe de onde, passam rapidamente pelo papel e em seguida desaparecem sem deixar rastros. Observando de modo mais atento, chego à conclusão de que as linhas são pistas gravadas à flor da página, que giram quando o motor do livro é acionado. As páginas nada mais são do que um disco desdobrado em muitas partes, peças de um mesmo giro espiralado.

Que tipo de disco é este? Reconheço, no papel, sulcos às vezes profundos, poeira acumulada, arranhões que são súbitos atalhos entre linhas, camada porosa cujas depressões aos trancos, como se raspasse as palavras, como se do contato íntimo é que surgisse a chiadeira do texto. Este disco é uma trilha acidentada, que produz um som repleto de contrastes, reflexos opacos sobre uma página negra, petrolífica, na qual posso identificar as marcas de meus dedos, que auxiliam no comando de pinos, hastes, braços, correias, engrenagens de uma vitrola cheia de caprichos mecânicos. Deixo que os olhos, atritando o papel, provoquem uma sonoridade feita de empenamentos, solavancos, baques. Percussão, enfim, que manifesta sua total rudeza quando, com o prato girando em falso, não há ninguém para virar a página.

Entretanto, às vezes também tenho a sensação de que as linhas rodam sobre o piso de um salão de festas de tal maneira polido que os convidados parecem patinar sobre uma placa de vidro espelhado cujo efeito oscila entre a reflexão total da luz, que chega a se decompor em breves arco-íris, e um sonho de transparência no qual o olho que lê não toca jamais a página, mas apenas capta, magicamente, seus sinais, olho pura velocidade, canhão de laser que lambe o disco com a língua incorpórea do feixe energético. Disco digital que expulsa os dedos, desidrata os sons, retendo apenas sua fluidez, tão etéreos que transpõem o limite das asperezas que definem um som, emergindo das palavras que são puras porque meras formas, cruzando esta página impalpável.

Tangíveis ou não, as linhas não cessam seu movimento. Agulha ou raio, meus olhos são conduzidos por estes traços paralelos, que na verdade se curvam, já que as paralelas se encontram no infinito que se estende para além da página. Ler é, portanto, compor arcos, até que soe, orgânica ou hipotética, revelando ou ocultando ruídos, a música do texto. Coloquei em rotação o disco de palavras. Terei que arcar com as reverberações do seu giro.

Fecho o livro, mas constato: na chave que liga este fonógrafo de papel, não existe a posição OFF.

Texto Disco, do belíssimo Tablados: Livros de livros, de Luis Alberto Brandão.


julho 11, 2013

A Ceia Divina

Laranja na mesa. Bendita a árvore que te pariu.

Clarice Lispector


julho 11, 2013

Ilustração de Gaëlle Boissonnard


 


julho 4, 2013

Quatro de julho de dois mil e treze, completo hoje 40 anos de vida.

Ainda não sei andar de bicicleta, ainda não acertei a receita de brioche. Muitos sonhos mofaram engavetados, outros ainda ensaiam voo.

Meus olhos respiram e fotografam os aromas das ruas. O outono não é tão bonito quanto o da infância, agora é seco e cheira a fuligem.

Camille Claudel é minha divindade. Simone de Beauvoir, minha musa!

Para a decepção dos que esbravejavam previsões, eu ainda sou como aquela garota, os ideais não foram arroubo de juventude, não passaram… moram em mim e me guiam…

A meninice cresceu comigo e ri quando caduco. É minha sabedoria. Uma de minhas vozes.

Eu passeio bem na alegria do instante. Caminho nas calêndulas orvalhadas sem machucar as pétalas. E voo de pés descalços.

Hilda Hilst é meu remédio, meu alimento. Clarice Lispector, minha oração.

O hálito da canção nasceu aqui e repetiu presságios. Nem todo acorde é assonante.

Amélie Poulain é um dos meus refúgios lúdicos. 

Fragmentos da minha listinha de sobrevivência:

Broa de fubá com café quentinho;

flor de gerânio na jardineira;

incêndio na boca da menina

e céu azul-lilás.

 

Fernanda Montenegro e Giulietta Masina;

Hilary Swank e Sean Penn,

alguém não?

 

Itamar Assumpção e Jean-Michel Basquiat;

flor no pé de manacá;

Stephen Daldry, seus silêncios,

lugares e nuvens…

 

Gingado de Mick Jagger;

Cate Blanchett de Bob Dylan;

chuva em Tom Jobim;

Caetano Veloso,

sempre!

 

Nenhum lp ainda superou meu amor por Circuladô de Fulô, nem mesmo A fábrica do poema, de Adriana Calcanhotto e Quanta, de Gilberto Gil.

 

Papel rasgado e rascunho

água do filtro de barro;

companhia dos meus cães.

Eu nem peço muito, um estojo de canetas coloridas

e umas estrelas em céu enluarado.


julho 3, 2013

Meninos Kuikuros, fotografia de Tiago Queiroz

A mudança mais importante foi a Constituição de 1988, que reconhece o direito do índios às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço jurídico só pôde ocorrer por conta da mobilização indígena e de sua atuação junto a aliados na Assembleia Constituinte. Imagens da época mostram a presença maciça de representantes indígenas acompanhando os debates e a votação da nova Constituição.

O imaginário brasileiro sobre o índio oscila entre os extremos de duas visões herdadas da filosofia europeia. Ele é “puro” ou “atrasado”.

Ser indígena não é simplesmente andar pintado, com pena, morando no mato.  É também participar da construção das políticas e dos espaços de tomada de decisões.

(Sônia Guajajara)

Trechos do Dossiê Nação Indígena, Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 9,  Abril de 2013.

Sônia Guajajara é líder da Associação dos Povos Indígenas do Brasil e vice-presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Técnica em enfermagem e bacharel em letras, luta pelas causas de seus povos com sabedoria.

A volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar de “estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica enorme desconfiança.

(…)

O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos” infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.

A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60 do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num comportamento disseminado por todo o país, por representantes do Estado brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que precisamos conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como se fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser violado, como violada foi a sua terra.

Eliane Brum. Quem quiser ler o artigo completo, basta clicar aqui

Fotografia de Ana Mokarzel

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, 

o Brasil tinha descoberto a felicidade.

(Oswald de Andrade)

Fotografia de Araquem Alcântara


julho 1, 2013

Reli ontem alguns textos de Eduardo Galeano, os dois que publico agora me machucaram (de novo!). São textos que não têm fim, continuam em nós, nos devolvem ao espelho humano.

“Os espelhos estão cheios de gente.

Os invisíveis nos veem.

Os esquecidos se lembram de nós.

Quando nos vemos, os vemos.

Quando nos vamos, se vão?”

O autor se irritou certa vez quando um jornalista falou sobre ser irônico. Não há ironia, reclamou. Galeano disseca o fato, nos devolve a história, muitas vezes mal contada e deturpada. Lacera o cinismo, tão comum na mídia, na escola, na sala de jantar…

Ecos

Foi-se embora, mas ficou. Frei Tito estava livre, exilado na França, mas continuava preso no Brasil. Os amigos diziam a ele o que os mapas diziam, que o país de seus verdugos estava longe, do outro lado do oceano, mas aquilo não adiantava nada: ele era o país onde seus verdugos viviam.

Estava condenado à repetição cotidiana de seu inferno. Tudo que tinha acontecido com ele tornava a acontecer. Durante mais de três anos, seus torturadores não deram trégua. Fosse aonde fosse, nos conventos de Paris e de Lyon ou nos campos do sul da França, davam chutes em seu ventre e golpes de cabo de fuzil na sua cabeça, apagavam cigarros em seu corpo nu e metiam a máquina de choques elétricos nos seus ouvidos e na sua boca.

E não se calavam nunca. Frei Tito havia perdido o silêncio. Em vão buscava algum lugar, algum canto do templo ou da terra, onde não soassem aqueles gritos atrozes que não o deixavam dormir, nem o deixavam rezar suas orações que antes foram seu ímã de Deus.

E não aguentou mais. É melhor morrer do que perder a vida, foi a última coisa que escreveu.

GALEANO, Eduardo. Bocas do tempo. Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: LP&M, 2004, p. 311.

As idades de Ana

Em seus primeiros anos, Ana Fellini acreditava que seus pais tinham morrido num acidente. Seus avós contaram. Disseram a ela que seus pais vinham buscá-la quando o avião caiu.

Aos onze anos, alguém disse a ela que seus pais tinham morrido lutando contra a ditadura militar argentina. Não perguntou nada, não disse nada. Ela, menina falante, desde aquele momento falou pouco ou nada.

Aos dezessete anos, era difícil beijar. Tinha uma chaguinha debaixo da língua.

Aos dezoito, era difícil comer. A chaga era cada vez mais funda.

Aos dezenove, foi operada.

Aos vinte, morreu.

O médico disse que foi morta por um câncer na boca.

Os avós disseram que foi morta pela verdade.

A bruxa do bairro disse que morreu porque não gritou.

GALEANO, Eduardo. Espelhos. Uma história quase universal. Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: LP&M, 2008, p. 317.