Contos

Civilização

Ar frio,

água quente.

Osvaldo Emery

Localização Ideal

Compraram um apartamento no último piso de um edifício que emerge de um grande centro comercial.
É vulgar ver o marido columbófilo entretido na cobertura.
A esposa, vem às compras de roupão e chinelos.

Logo à entrada da casa podemos observar algumas excentricidades.
Uma imagem da Nossa Senhora, o emblema do Clube e um galo de Barcelos.
Tudo em ouro, claro.

Cartão Mágico

Precisava de pontos no cartão para obter a televisão na gasolineira.
Fez contas, e percorreu o país sete vezes trocando combustível por pontos.
Quando atingiu o valor necessário, a televisão estava esgotada.
Usou o cartão como lâmina para os pulsos.

Microcontos de Adão Conde. Autor nascido em Lisboa, em 1977.

Fama

Graças ao serviço temporário e ao sol (de rachar), Florisvaldo varria calçadas e enxergava estrelas.

Maria Soares. Publicado originalmente em: http://www.veredas.art.br/


Verde

Pingentes de vidro pendem do ar. A luz desliza pelo vidro e forma uma lagoa de verde. O dia inteiro os dez dedos do lustre gotejam verdes sobre o mármore. As plumas dos periquitos – seus gorjeios estrídulos – afiadas lâminas das palmeiras – verdes também; verdes hastes cintilando ao sol. Mas o áspero vidro goteja no mármore; lagoas pairam sobre a areia deserta; camelos cambaleiam ao atravessá-las; juncos as margeiam; ervas silvestres obstruem o caminho; aqui e ali uma floração branca; o sapo agita-se; à noite as estrelas coagulam-se hirtas. Vem o entardecer, e a sombra varre o verde sobre o consolo da lareira, a eriçada face do oceano. Nenhum navio vem; ondas sem rumo flutuam sob o céu inócuo. É noite; as hastes gotejam borrões de azul. O verde se vai.

Azul

O monstro de nariz arrebitado emerge da superfície e esguicha por suas grossas narinas duas colunas de água que, branco flamejante no centro, derramam uma fímbria de espumas azuis. Afagam de risco azul o encerado negro de sua pele. Lançando água pela boca e narinas canta, impetuoso contra a água, e o azul se fecha sobre ele inundando os seixos polidos de seus olhos. Atirado à praia ele jaz, cego, obtuso, soltando estéreis escamas azuis. Seu azul metálico tinge o ferro desbotado da praia. Azuis são as costelas de um barco a remo em destroços. Uma onda encapela-se sob os sinos azuis. Mas a catedral é diferente, fria, carregada de incenso, desmaiado azul nos véus das madonas.

Virginia Woolf

Tradução: Leonardo Vieira de Almeida

o salto

depois de matá-lo e largar para trás a bolsa da mulher que gritava em desespero e também a polícia e os anônimos que o perseguiam em transe de ódio, saiu pela portaria dos fundos do parque e atravessou a rua entre os ônibus e carros e arregalou os olhos para

o destino

e apoiou a perna direita sobre a mureta

e aproveitou o impulso da corrida

e bateu asas sobre o rio

sem conseguir pensar em nada.

Anderson de Almeida


Teologia natural

– Hilda Hilst –

A cara do futuro não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroída e pés, tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa, Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d’água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou na casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo que Tiô possuía, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesmo a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.

6 Responses to Contos

  1. Q honra, minha querida!
    Mas estou bem acompanhado, hein?!
    Grande beijo.

  2. Anonimo disse:

    oii eu adorei esses contos…principalme o “verde”..e mto bacana…o autor deste site podia colocar mais contos…
    bjos!

  3. laryssa disse:

    eu gostei do vede

  4. denise disse:

    eu gostei do salto

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