20 de novembro:

Dia Nacional da Consciência Negra!

Os africanos, vítimas do tráfico para as Américas, transportaram consigo para além da imensidão das águas o rastro/resíduo de seus deuses, de seus costumes, de suas linguagens. Confrontados à implacável desordem do colono, eles conheceram essa genialidade, atada aos sofrimentos que suportaram, de fertilizar esses rastros/resíduos, criando, melhor do que sínteses, resultantes das quais adquiriram o segredo. As línguas crioulas são rastros/resíduos singrados na grande boca da Bacia do Caribe e do oceano Índico.

Édouard Glissant. Caribe, 1928.

Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.


-Estou a apodrecer vivo.

Olhei para trás e dei de chofre com o homem que pronunciara aquela frase. Mais do que uma pessoa, parecia o fiapo de uma extinguível sombra. Uma silhueta de si próprio, réstia de alguém que fora um ser humano. Olhei-o nos olhos. Olhei-o fixamente. Tinha um olhar que encenava a própria tragédia. Um olhar que denunciava o estado do seu corpo já desfeito pelo tempo, não obstante a idade. Estava curvado e parecia levitar. Caminhava empurrado pela aragem. Com ele, havia a manhã de sol e algum frio naquele sábado findava. Tinha alguma luz naqueles olhos que acenavam à vida, que lhe fugia. Certamente.

Estávamos os dois em plena avenida Samora Machel, na baixa Maputo. A cidade imitava o bulício de outros dias. Interrompi meus pensamentos sobre o esqueleto do prédio Pott, que também apodrecia – como as palavras pungentes do homem que parara diante de mim – , resistindo as suas paredes mijadas e defecadas, sujas e ultrajadas, depois de longos anos de abandono. Também o prédio, cuja construção começara em 1905, cem anos antes justamente, se queixava das mazelas do corpo. Deixei-me do corpo de pedra e dedique-me àquele homem que entrara em minha solidão.

(…) Fixei a sua imagem sofredora. Magro, pelo pescoço se adivinhavam as marcas das veias. No olhar, a sombra dele próprio. Fiquei aturdido perante aquela imagem de um homem que sobrara naquele esqueleto, da vida que resistia naquela expressão.

(…)

Nelson Saúte. Moçambique, 1967.

Trecho do conto A sombra vagabunda. Rio dos Bons Sinais.

Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.


“Estou na margem do rio, contemplando as mulheres que se banham. Respeitam a tradição: antes de entrar na água, cada uma delas pede permissão ao rio:

– Dá licença?

Que silêncio lhes responde, autorizando que se afunde na corrente? Não é a penas a língua local que eu desconheço. São esses outros idiomas que me faltam para entender Luar-do-chão. Para falar com minha mãe, que vai fluindo, ondeada, até ser foz.

Mia Couto. Moçambique, 1955.

Trecho do romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Nuno Lobito, Portugal, 1965

Fotos de Cabo Verde, Moçambique e Quênia.

Site oficial: http://www.nlphotographer.com/

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