Ilustração de Nan Lawson 

Vou apalpando o livro aberto, com cuidado extremo, avaliando as superfícies, reconhecendo o volume deste aparelho cujo funcionamento me é estranho. Meus dedos deslizam pela lombada, à procura de interruptores, percorrem a extensão da capa, indagam mostradores com ponteiros e luzes, passam à contracapa, pesquisam fendas com entradas para cabos, se alongam nos planos laterais das paginas, perscrutando algum visor, algum painel com botões que se possam apertar ou girar.

Numa reentrância quase imperceptível, encontro finalmente a chave. Coloco-a na posição ON. As linhas das páginas começam a se mover. Verifico que o momento não ocorre de uma linha a outra, segundo a dinâmica mais comum do olhar durante a leitura. O fluxo se dá no sentido da extensão de cada linha, como se as páginas fossem compostas de diversos painéis eletrônicos horizontais, exibindo palavras que, oriundas não se sabe de onde, passam rapidamente pelo papel e em seguida desaparecem sem deixar rastros. Observando de modo mais atento, chego à conclusão de que as linhas são pistas gravadas à flor da página, que giram quando o motor do livro é acionado. As páginas nada mais são do que um disco desdobrado em muitas partes, peças de um mesmo giro espiralado.

Que tipo de disco é este? Reconheço, no papel, sulcos às vezes profundos, poeira acumulada, arranhões que são súbitos atalhos entre linhas, camada porosa cujas depressões aos trancos, como se raspasse as palavras, como se do contato íntimo é que surgisse a chiadeira do texto. Este disco é uma trilha acidentada, que produz um som repleto de contrastes, reflexos opacos sobre uma página negra, petrolífica, na qual posso identificar as marcas de meus dedos, que auxiliam no comando de pinos, hastes, braços, correias, engrenagens de uma vitrola cheia de caprichos mecânicos. Deixo que os olhos, atritando o papel, provoquem uma sonoridade feita de empenamentos, solavancos, baques. Percussão, enfim, que manifesta sua total rudeza quando, com o prato girando em falso, não há ninguém para virar a página.

Entretanto, às vezes também tenho a sensação de que as linhas rodam sobre o piso de um salão de festas de tal maneira polido que os convidados parecem patinar sobre uma placa de vidro espelhado cujo efeito oscila entre a reflexão total da luz, que chega a se decompor em breves arco-íris, e um sonho de transparência no qual o olho que lê não toca jamais a página, mas apenas capta, magicamente, seus sinais, olho pura velocidade, canhão de laser que lambe o disco com a língua incorpórea do feixe energético. Disco digital que expulsa os dedos, desidrata os sons, retendo apenas sua fluidez, tão etéreos que transpõem o limite das asperezas que definem um som, emergindo das palavras que são puras porque meras formas, cruzando esta página impalpável.

Tangíveis ou não, as linhas não cessam seu movimento. Agulha ou raio, meus olhos são conduzidos por estes traços paralelos, que na verdade se curvam, já que as paralelas se encontram no infinito que se estende para além da página. Ler é, portanto, compor arcos, até que soe, orgânica ou hipotética, revelando ou ocultando ruídos, a música do texto. Coloquei em rotação o disco de palavras. Terei que arcar com as reverberações do seu giro.

Fecho o livro, mas constato: na chave que liga este fonógrafo de papel, não existe a posição OFF.

Texto Disco, do belíssimo Tablados: Livros de livros, de Luis Alberto Brandão.

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