Belo Horizonte, noite fria de junho,

décimo primeiro FIT.

Compartilho com muitos um silêncio de arrepiar,

uma respiração morna.

Minutos depois de risadas e mais risadas. 

Plateia entregue a Cacá Carvalho, esse ator inteiro,

denso leve êxtase.

O corpo-voz reverbera,

público,

o seu exercício de generosidade cortante.

Abissal.

 

Texto de Luigi Pirandello (Nobel, em 1934)

e direção do italiano Roberto Bacci.

O vazio da existência, nossas mãos vagas e breves.

 O olhar do outro nos torna estranhos

para nós.

Identidade múltipla, fluida, fugidia.

Uma necessidade de nos compreendermos diante do espelho

que revela-nos a crueza da solidão,

de nos compreendermos diante do outro,

que nos aponta um defeito que não conhecíamos,

que nos enxerga como sequer nos víamos.

O despretensioso comentário da mulher de que o nariz

de Vitangelo Moscarda pendia para a direita

culmina na crise de identidade do sujeito

e nas suas reflexões sobre a existência. 

A ideia que fazia de si era incompleta,

em construção.

 –

“Mas o que somos senão a invenção de um eu? Que são muitos?

Assim eu queria estar só. Sem mim.

Quero dizer, sem aquele “mim” que eu já conhecia ou pensava conhecer.

Sozinho com um certo estranho

que eu já sentia obscuramente não poder afastar para longe,

 que era eu mesmo:

o estranho inseparável de mim.”

 

Somos-não-somos Moscarda, um nenhum, cem mil.

 

“Eu não me conhecia, não possuía nenhuma realidade minha, própria, e vivia num estado como de fusão contínua, quase fluido, maleável. Os outros me conheciam, cada um a seu modo, segundo a realidade que me haviam dado; isto é, cada um via em mim um Moscarda que não era eu – não sendo eu, propriamente ninguém para mim -, tantos Moscardas quanto eles eram, e todos mais reais do que eu, que não tinha para mim mesmo, repito, nenhuma realidade.”

— 

A vida num átimo?

Como se traduz aquilo que em mim vive e

pulsa?

“Ofereço-lhes uma cadeira, vocês se sentam, e vamos tentar chegar a um acordo.

Depois de uma hora de boa conversa, nos entendemos perfeitamente.

Amanhã vocês retornam, com o dedo em riste, gritando:

– Como assim? O que você entendeu? Você não me disse isso e aquilo?

Isso e aquilo, perfeitamente. Mas o problema é que vocês, meus caros, nunca entendem; e eu nunca vou poder explicar-lhes como se traduz em mim aquilo que vocês me dizem. Sei que vocês não falaram turco, sei disso. Usamos, eu e vocês, a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos, eu e vocês, se as palavras, em si, são vazias? Vazias, meus caros. E vocês as preenchem com o seu sentido, ao dizê-las a mim; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente as preencho com o meu sentido. Pensamos que nos entendemos, mas não nos entendemos de modo nenhum.

Ah, isso também é uma velha história, todo mundo sabe. E eu não pretendo dizer nada novo. Apenas volto a perguntar-lhes:

– Mas por que, então, santo Deus, vocês continua a fazer como se não soubessem disso? Por que insistem em falar de vocês, se sabem que, para serem para mim aquilo que são para si mesmos, e eu a vocês tal como sou para mim mesmo, seria preciso que eu, dentro de mim, lhes conferisse aquela mesma realidade que vocês conferem a si, e vice-versa. E isso é possível?

Infelizmente, meus caros, por mais que vocês façam, sempre me darão uma realidade a seu modo, mesmo crendo de boa-fé que seja a meu modo. E talvez seja, não digo que não, quem sabe; mas a um ‘meu modo’ que eu desconheço e que jamais poderia conhecer, o qual somente vocês, que me veem de fora, reconheceriam: portanto, um ‘meu modo’ a seu uso, não um ‘meu modo’ para mim.

Houvesse fora de nós, externa a vocês e a mim, uma senhora realidade minha e uma senhora realidade sua, digo, em si mesma, igual e imutável! Mas não há. Há em mim e para mim uma realidade minha, aquela que eu me dou; e uma realidade sua e de vocês, para vocês, aquela que vocês se dão – as quais nunca serão as mesmas, nem para vocês nem para mim.

E agora?”

 –

Qual dos eus eu devo preencher?

Como lidar com essa angústia de existir?

  “É como se tivesse sempre diante de si a própria imagem, em cada ato, em cada movimento.”

Cacá é único,

impressiona,

comove

nos toma o coração de assalto,

nos transporta para dentro de nós

estilhaça espelhos

e idealizações

o público torna-se cúmplice de sua grandeza

nua

dissecada

Moscardo (rindo de si?) ri a risada do pai

e sua “ternura estranha”

duas personas ali,

imensas pequeninas

em Cacá.

 —

ouvimos seus timbres diversos

com os olhos todos.

 –

Carvalho nos disponibiliza às sensações

nos desconecta da raso chão cotidiano

 

essa é a mágica do teatro

um tablado

um texto primoroso

uma direção certeira

e um grande ator.

Salve!

Trechos  do texto Um nenhum e cem mil, de Luigi Prirandello.

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