Escuto que escuto a canção Um ser de luz, do poeta Paulo César Pinheiro, feita para Clara Nunes, na versão de Mariene de Castro (cd Tabaroinha). Linda homenagem dessa baiana, a doce filha de Oxum, largamente comparada à guerreira da utopia*! E comovente homenagem de Paulo, mesmo agnóstico, reverenciou a religiosidade da esposa, de uma maneira leve, tocante e singular. Ele, que sofreu os terríveis ataques de uma imprensa mórbida e irresponsável no período em que Clara faleceu. E teve que segurar toda a barra, praticamente sozinho, todo o circo que foi armado, tanto em frente ao hospital, como no velório. Ele, que pediu tanto para Clara desistir da cirurgia, foi brutalmente acusado e perseguido. Mas, está tudo aí, na canção, seu amor, seu lirismo, seu olhar sobre Clara – um ser de luz!

Ouvi tanto Clara Nunes com o Jairo. Eu sempre ficava impressionada com sua capacidade de saber todas as letras de cor, era incrível, o danado não errava uma. Império Serrano roxo, conhecia samba-enredo e data, eu adorava testá-lo, agora canta o de 83, Jairo… ele ria e cantava. Saudade de você, meu nego –  que falta faz sua alegria – das suas mãos grandes esmagando as minhas, pequeninas. Saudade dos nossos papos na cantina da Letras, suas ideias mirabolantes.

É estranho porque não temos tempo nem para sofrer a perda, não deixam! Temos compromissos, horários, patrões, alunos… muita cobrança e expectativa… pouca solidariedade… As pessoas também não têm tempo, muito menos paciência para a tristeza, afinal, a tristeza é chata, cutuca e incomoda nosso medo da morte, nosso medo de pensar o que é a vida, nosso medo de parar e escutar o ritmo do nosso próprio corpo, medo de sentir a roda da vida (a gira, a ciranda da vida, filosofa Martinho da Vila!).

Afinal, precisamos vender a cara feliz das redes sociais e gerar riqueza para os outros, para os que nos exploram cheios de sorrisos. Não há tempo para vivenciar o luto. E ainda ouvimos todo aquele papo de que trabalhar distrai, faz bem, melhor do que ficar deprimido em casa. Ora, não se trata de depressão, trata-se de tristeza. Depressão é justamente a doença desses tempos insanos em que ser “feliz” e produtivo consistem na tônica, na palavra de ordem do capitalismo global, fantasiado de democrático. Não vivenciar a tristeza, na minha opinião, é que pode acarretar depressão, cansaço, desistência, entrega.

Essa canção é tão a sua cara, meu querido. Canto aqui com Mariene, bem alto, com a sensação de que pode chegar a você.

  

Um Ser de Luz

 

Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior
E o menino Deus lhe abençoou
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar

Sua voz então a se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava espantava a dor
Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia
Foi que o menino Deus chamou
E ela se foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
E a gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de vê-la, sabiá

Sabiá
Que falta faz sua alegria
Sem você, meu canto agora é só
Melancolia

Canta meu sabiá,
Voa meu sabiá,
Adeus meu sabiá…
Até um dia…

*subtítulo da biografia Clara Nunes. Guerreira da Utopia, de Vagner Fernandes. Rio de Janeiro, Ediouro, 2007. Ótima dica para você conhecer a vida da cantora e se livrar dos diversos erros da mídia, impressos como verdade.

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