Jairo morreu.

Grito seco no abismo.

O ritmo para.

A mudez de uma linha reta,

horizontal.

Não há movimento, tensão-repouso, pausa-batida

– uma verdade pálida, sem pulsação.

Crua de doer os ossos.

Meu amigo querido da militância, um puta líder carismático, ousado, o Harvey Milk do Conjunto Cristina (ele adorava quando o chamava assim), sonhamos juntos e realizamos muito, na marra, contra a opressão da direita e a retórica esgarçada da esquerda, porque sabíamos que não éramos etiquetados, só queríamos fazer algo, acreditávamos nas mudanças do microcosmo, nas pequenas mudanças… e os camaradas falando falando (até babar) sobre as macroestruturas, que se desmoronavam, na verdade (já era década de 90), sabíamos que aquele discurso era anacrônico e não levaria a nada, como não levou. Cada um a seu modo batalhou pelas pequenas mudanças, eu na Ventosa, ele coordenador do PROTEJO (Projeto de Proteção a Jovens em Territórios Vulneráveis) do Ministério da Justiça. E, na verdade, incorrigíveis, nunca paramos de sonhar.

Nos grudamos tanto na época da UJS, nossos papos intermináveis madrugadas inteiras…e muitos, muitos planos. Um deles foi de fazer uma peça sobre Cartola; andei vários quarteirões até a Biblioteca Pública, (não existia net, gente, era todo um esforço para chegar aos livros) pesquisei apaixonadamente, lembro-me de um livro específico com um formato editorial diferente que toquei e abracei e cheirei, queria tatear a lírica do poeta da Mangueira… Mas não escrevi uma linha sequer. Saiu E era uma só Maria, um melodrama sobre a mulher, um questionamento febril e adolescente dos dogmas cristãos. Jairo, ao lado da Daniela, protagonizou. Encenamos, rodamos os colégios estaduais da cidade com a peça. Foi amador e incrível. Cada boteco que íamos, ele se sentava e proferia, com aquele timbre tão particular, a sua primeira fala: tenho 31 anos, acredito-me pai porque um dia despejei o prazer numa mulher, que era eu, ela-eu pari, parimos uma gotinha d’água. Lilás se chama minha filha.

Meu amigo querido das letras, puta poeta, movido pelo desejo ético de abrasar os arcaísmos e lacerar as conformidades. Sua poesia escancarada ri com a boca bem aberta; cutuca nossas feridas e incomoda. Periférica, perpassa as esquinas, com suas putas, malandros, vira-latas e Marias. Tive o prazer de prefaciar dois de seus livros e de conviver intimamente com sua escrita, seus rascunhos, seu processo de criação. Tínhamos essa liberdade rara de modificar o verso do outro, de compor juntos os poemas. Sempre me comoveu a tessitura cortante da sua lírica e a maneira tão particular e brilhante de olhar o mundo e o outro, de frente, sem medo ou preconceitos. O ser humano era sua matéria-prima, na sua inteireza e complexidade. Escrevi no prefácio do livro que ainda não saiu:

Para a tessitura dos poemas, o fino fio é navalha friaCorta a noite de Santa Luzia, a carne sedenta das meninas do Cristina,as reminiscências e covardias. Arranha as madrugadas, os bêbados e o bom senso. Tira uma lasca dos garotos, dos biscates, das cartomantes e das velhinhas. Mutila a bailarina. E desavisa.

Convivência e imprevisibilidade marcaram muito sua escrita, sua maneira tão própria de entender o mundo e de compartilhar sua sabedoria. Uma liberdade de quem retribui a piscadela do garoto de frete do Trianon, ele sempre soube o que é bom. Filho açucarado de Oxum, filho ácido de Cazuza. Antagonismos à mancheia. Jairo só sossegou quando eu disse que ele era mais fã de Cazuza do que eu. Um ciúme louco. Fomos atrás de Pablo Neruda, Clarice Lispector, Athur Rimbaud, Jack Kerouac, Allen Ginsberg… por causa das canções. Ficávamos horas divagando sobre uma letra. Só as mães são felizes, Cobaias de Deus e Só se for a dois foram as mais esmiuçadas. Solidão que nada era nossa oração,  e como é a cara dele:

 Cada aeroporto

É um nome num papel

Um novo rosto

Atrás do mesmo véu

Alguém me espera

E adivinha no céu

Que meu novo nome é

Um estranho que me quer

E eu quero tudo

No próximo hotel

Por mar, por terra

Ou via Embratel

Ela é um satélite

E só quer me amar

Mas não há promessas, não

É só um novo lugar

Viver é bom

Nas curvas da estrada

Solidão, que nada

Viver é bom

Partida e chegada

Solidão, que nada

Solidão, que nada.


Apresentei Janaína pra ele; disse, você vai amá-la, tenho certeza. E eles se amaram de cara, uma amizade intensa, entre sargaço e sertão, rosa e urucum. Não entregamos o amor da nossa vida nas mãos de qualquer um, ele sabia disso. Sempre cuidou dela de um jeito que eu nunca vi igual. Éramos melhores amigas, grudadas, de ouvir Adriana Calcanhotto todo domingo na casinha de tijolinhos do Nova Suíça. Já nos queríamos loucamente, só não tínhamos coragem. E como o Jairo colocava pilha. Não podia ser diferente, nosso primeiro beijo aconteceu na varanda da casa dele, o universo girou, coração na boca, pêssego em calda.  Jairinho me olhou da porta com aquele ar de quem sabia de tudo. E sabia. Tocava Caetano Veloso, vem, eu vou botar as mãos no seu quadril… “Un Coup de Dés”?*

Na terça-feira, começaríamos um trabalho novo, que não cabe aqui explicar, estávamos tão felizes, empolgados e ansiosos. O que fazer? Não quero nunca mais que terça-feira exista.  Sugeri o nome Veneno Antimonotonia no dia 18 de abril, ele pirou, colo aqui um trecho do email:

Rena,

tô besta frente ao nome

ontem, durante a aula, surgiu Deleuze, consequentemente,                                        Nietzche e descambou pro eterno retorno. Eu não tinha tempo pra explicá-lo melhor e saquei o Cazuza:

“Eu vejo o futuro repetir o passado,

Eu vejo um museu de grandes novidades,

O tempo não pára”

é o pharmakon, Renata.

veneno antimonotonia.

pirei.

 

Ele morreu dia 19 de abril.

Jês, Kariris, Karajás, Tukanos, Caraíbas,

Makus, Nambikwaras, Tupis, Bororós,

Guaranis, Kaiowa, Ñandeva, YemiKruia

Yanomá, Waurá, Kamayurá, Iawalapiti, Suyá,

Txikão, Txu-Karramãe, Xokren, Xikrin, Krahô,

Ramkokamenkrá, Suyá!!!


O barulho dos carros me soou ofensivo

Um rapaz passou por mim, na Avenida Augusto de Lima, com um sorriso largo ao celular, não fez sentido.

Ritmo incessante no trabalho; árvores buzinas paralelepípedos…

Como?

Eu só queria gritar Jairo morreu Jairo morreu.

Parou o coração assim, como quem erra e coloca o ponto final numa história em construção; como quem corta o assunto porque não sabe ouvir; como quem ceifa o jasmineiro antes da floração; como quem __________________

E eu sem ele?

* já escrevi sobre nós três aqui no blog, 17 de setembro de 2009.

Quem quiser ler, é só clicar aqui

5 Responses to

  1. Gustavo Cerqueira Guimarães disse:

    Muito tocado pelo seu texto. Sem palavras para descrever sua homenagem. Sem metáforas. Depois de lê-lo estou a ouvir ‘Bruma’, do Cazuza.

  2. Rodrigo Viana disse:

    Nossa, Renata. Que texto maravilhoso! Linda sua homenagem. Ninguém mais poderia homenagear o Jairo com tanta propriedade e beleza e riqueza e simples-complexidade e encanto… Amei. Ficam a saudade e a poesia dele. Beijos. Rodrigo Viana

  3. jana disse:

    Queria gritar seu nome até acabar minha dor…..ainda farei.não foi no velório.As pessoas não entenderiam,mas queria dedicar aonde o grito fosse.que saísse toda dor,mas essa é muito silenciosa , cortante e teria que perder a voz.

  4. Valdir disse:

    Um silêncio de reflexão e saudade já diz tudo sobre o texto ! Linda homenagem .

    Valdir e Anita

  5. monica disse:

    Ô Renata, que texto maravilhoso, que maneira tão tocante de você falar da saudade desse moço tão especial. Me deu um bocado saudade desses dias, desse tempo, dessas histórias que de um certo modo pude presenciar , dessas pessoas todas (vc, Daniela, Jairo, Janaína, Darlan) … que falta desse amor de amigo, sempre tão incandescente. O Jairo era raro. Que saudade de tudo!

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