Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de outubro de 1902 e não morreu nunca mais

Diante de sua obra, sou aquela criança que quer adentrar, entre curiosa e amedrontada, a casa da doida, sou a adolescente que quer dinamitar a ilha de Manhattan, sou apenas um homem pequenino à beira de um rio…

À benção, poeta!

Museu da Inconfidência

 

São palavras no chão

e memória nos autos.

As casas inda restam

os amores, mais não.

E restam poucas roupas

sobrepeliz de pároco,

a vara de um juiz,

anjos, púrpuras, ecos.

Macia flor de olvido,

sem aroma governas

o tempo ingovernável.

Muros pranteiam. Só.

Toda história é remorso.

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Claro Enigma. P. 287

Confissão

 

É certo que me repito,

é certo que me refuto

e que, decidido, hesito

no entra-e-sai de um minuto.

É certo que irresoluto

entre o velho e o novo rito,

atiro à cesta o absoluto

como inútil papelito.

É tão certo que me aperto

numa tenaz de mosquito

como é trinta vezes certo

que me oculto no meu grito.

É tudo certo e prescrito

em nebulosos estatuto.

O homem, chamar-lhe mito

não passa de anacoluto.

 

ANDRADE, Carlos Drummond. As impurezas do Branco p. 441/442

 

Cerâmica

 

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,

Ela nos espia do aparador.

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Lição de coisas. p. 403.

O descanso do poeta. Fotografia de José de Almeida e Maria Flores.

 

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

    Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

    mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

    És todo certeza, já não sabes sofrer.

    E nada esperas de teus amigos.

    Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

    Teu ombros suportam o mundo

    e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

    As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

    provam apenas que a vida prossegue

    e nem todos se libertaram ainda.

    Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

    prefeririam (os delicados) morrer.

    Chegou um tempo em que não adianta morrer.

    Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

    A vida apenas, sem mistificação.

ANDRADE, Carlos Drummond. Sentimento do mundo. p. 131.

Antologia Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.

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