Hoje Hilda Hilst faria 80 anos.
Faço desse espaço virtual um pedaço da sua morada
– uma casa de águas. Romã baba alcaçus,
doçuras e iras.
Estão todos convidados a entrar
para celebrar a obra e a poeta…
E qualquer palavra que eu tente dizer agora me parece pequena,
desnecessária;
apenas
costuro o infinito sobre o peito
como aqueles que amam.
CALMA, CALMA, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens de teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado.
Trecho de Fluxo, narrativa dedicada à amiga Lygia Fagundes Telles, do livro Fluxo-Floema, São Paulo: Globo, 2003
(…) je saisis en sombrant que la seule verité de l’homme, enfin entrevue, est d’être une supplication sans réponse.
Georges Bataille
Com meus olhos de cão paro diante do mar. Trêmulo e doente. Arcado, magro, farejo um peixe entre madeiras. Espinha. Cauda. Olho o mar mas não lhe sei o nome. Fico parado de pé, torto, e o que sinto também não tem nome. Sinto meu corpo de cão. Não sei o mundo nem o mar a minha frente. Deito-me porque o meu corpo de cão ordena. Há um latido em minha garganta, um urro manso. Tento expulsá-lo mas homem-cão sei que estou morrendo e que jamais serei ouvido. Agora sou espírito. Estou livre e sobrevoo meu ser de miséria, meu abandono, o nada que me coube e que me fiz na Terra. Estou subindo, úmido de névoa.
Trecho de Com meus olhos de cão. São Paulo: Globo, 2006
Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
Love, love, my season
Sylvia Plath
E podeis crer que há muito mais vigor
no lirismo aparente
no amante Fazedor de palavra
Do que na mão que esmaga
A ideia é ambiciosa e santa
E o amor dos poetas pelos homens
É mais vasto
Do que a voracidade que vos move
E mais forte há de ser
quanto mais parco
Aos vossos olhos possa parecer.
Poemas de Júbilo, Memória,
Noviciado da Paixão. São Paulo: Globo, 2003