Maria Bethânia

 

 

 

 

 

 

 

 

Seu canto é inteligência sensível feita somente de matéria-prima.

Dispensa adornos. É original sem réplicas.

Maria Bethânia é uma geografia de limites bem definidos.

Seu gestual garante-lhe inteireza.

É a grande atriz que o teatro perdeu para a canção brasileira.

No palco, tem tudo de alegre e trágico que o país possui.(…)

Bethânia é a única pessoa que conheço

onde o corpo se faz presente por inteiro

num simples boa noite.

Thereza Eugênia de Andrade

Maria Bethânia e Caetano Veloso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O PERFIL DE BETHÂNIA

 

O perfil de Bethânia é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da tragédia, desenha-se o nariz espantoso: é o nariz do chefe indígena norte-americano, é o nariz da bruxa de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz assim, os outros são apenas uma referência a ele. Se esse nariz na vanguarda de uma batalha que o homem superior adivinhou tramar-se no cérebro por trás daquela testa aponta orgulhosamente para o futuro da beleza, a boca parece desmentir a armada: emergindo a um tempo brusca e suavemente à flor do visível, ela anuncia o mel que destilará e consumirá: em palavras, em beijos, em mel. Sim, porque se os olhos traem o corpo por serem uma revelação do espírito inscrito na carne, a boca trai o corpo por ser uma revelação do próprio corpo. Insondáveis são os mistérios do espírito e olhos que vêem inquietam-se diante de olhos que vêem.

         Mas os mistérios do corpo não são menos insondáveis e a boca, esse transbordamento do lado de dentro de um corpo vivo para o seu exterior, é um pequeno escândalo permanente. Assim, a boca de Maria Bethânia, vista aqui de perfil, primeiro parece negar e depois explica e aprofunda a informação plástica estampada na parte superior de sua cabeça: traduz em doçura e amargor o que fora enunciado em dureza e alegria. O que seu queixo arremata numa curva fresca da felicidade infantil. Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar com alguém do outro lado e depois se volta, agora de frente para nós, indecifrável.

 

 

VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. [Apresentação e organização Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das letras, 2005

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