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Ressurreição de Camille
(Eduardo Galeano)
A família declarou-a louca e meteu-a num manicômio.
Camille Claudel passou ali, prisioneira, os últimos trinta anos de sua vida.
Foi pra o seu bem, disseram.
No manicômio, cárcere gelado, se negou a desenhar e a esculpir.
A mãe e a irmã jamais a visitaram.
Uma ou outra vez seu irmão Paul, o virtuoso, apareceu por lá.
Quando Camille, a pecadora, morreu, ninguém reclamou seu corpo.
Anos levou o mundo até descobrir que Camille não tinha sido apenas a humilhada amante de Auguste Rodin.
Quase meio século depois de sua morte, suas obras renasceram e viajaram e assombraram: bronze que baila, mármore que chora, pedra que ama. Em Tóquio, os cegos pediram licença para apalpar as esculturas. Puderam tocá-las. Disseram que as esculturas respiravam.
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Van Gogh
(Eduardo Galeano)
Quatro tios e um irmão se dedicavam ao comércio de obras de arte, mas ele só conseguiu vender um quadro, um único, em toda a sua vida. Por admiração ou lástima, a irmã de um amigo pagou quatrocentos francos por um óleo, O vinhedo vermelho, pintado em Arles.
Mais de um século depois, suas obras são notícia das páginas financeiras de jornais que ele jamais leu,
são as pinturas mais cotadas nas galerias de arte onde nunca entrou,
as mais vistas em museus que ignoravam a sua existência
e as mais admiradas nas academias que lhe aconselharam a se dedicar a outra coisa.
Agora Van Gogh decora restaurantes que lhe negariam comida,
consultórios de médicos que o trancariam num manicômio
e escritórios de advogados que o meteriam na prisão.
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Esse grito
(Eduardo Galeano)
Edvard Munch escutou que o céu gritava.
Já havia passado o crepúsculo, mas o sol persistia, em línguas de fogo que subiam do horizonte, quando o céu gritou.
Munch pintou esse grito.
Agora, quem vê seu quadro tapa os ouvidos.
O novo século nascia gritando.
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Kafka
(Eduardo Galeano)
Quando os tambores da primeira carnificina mundial andavam soando perto, Franz Kafka escreveu A metamorfose. E pouco depois, com a guerra já começada, nasceu O processo.
São dois pesadelos coletivos:
Um homem desperta transformado numa gigantesca barata, e não consegue entender por que, até que no final é varrido com uma vassoura;
E outro homem é preso, acusado, julgado e condenado, e não consegue entender por que, até que no final é apunhalado pelos verdugos.
De certa forma essas histórias, essas obras, continuavam todos os dias nas páginas dos jornais, que davam notícia do bom andamento da máquina de guerra.
O autor, fantasma de olhos febris, sombra sem corpo, escrevia na derradeira fronteira da angústia.
Pouca coisa publicou, quase ninguém leu.
Foi-se embora em silêncio, como tinha vivido. Em sua dolorosa agonia, só falou para pedir ao médico:
– se o senhor não for um assassino, me mate.
Trechos do novo livro de Eduardo Galeano Espelhos. Uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008