Palimpsesto para Hilda Hilst
Por Renata Cabral
Para ela e escrita é um sobressalto.
Avesso, urro, ungüento.
Vísceras que tocam a pauta.
Riso escancarado, porta aberta.
No entanto, açucena, nêspera, agave.
Uma desmesura no silêncio.
Um aguado de malva.
Tratado inconformado sobre a condição humana,
seus sofrimentos e limitações.
Idéia de Deus, “samsara”,
geometria de luz.
Elo entre o existencialismo niilista
e o gozo da transcendência.
Lírica atópica, terceira margem.
E quem é ela?
Dois olhos mareados dois rios dois abismos,
fixos no que não é fixidez,
permanentes na inconstância.
Tristes.
Povoados de sombras e funduras.
Tristes.
Hillé – está há muitos anos esquecida de si mesma. E de tudo o mais, olha as árvores e chora, lembra-se de ter sido árvore. E sente piedade. Foi também estes bichos pequenos: doninha rato lagartixa. Ah. E sente compaixão por todos eles.
Irmã H – que asperezas de tato descobri nas coisas de contento delicado. andei na direção oposta aos grandes ventos. Nos pássaros mais altos meu olhar de novo incandescia. Ah, fui sempre a das visões tardias.
Ruisis, Ruiska, Rukah – o meu de dentro é turvo, o meu de dentro quer se contar inteiro.
Quem é ela?
Aquela que colhe crisântemos perto da fonte,
que traz um dizer de alturas
e nomeia a morte chama candeia.
Aquela que aceita da língua
justamente o que lhe escapa
e reiventa recodifica,
numa volúpia que abrasa os arcaísmos
e lacera as conformidades.
Aquela que busca Deus pelos inversos:
porco, charco, imundícies
– skato logos, escato logos.
Lasciva, elegíaca, ardilosa.
Aquela Agda se impondo corrosiva.
Aquela que dribla a crítica
e toma vinho tinto todos os dias.
Aquela que escreve em todos os gêneros,
e em todos, poesia.
Aquela dos cantares de perda e predileção.
Aquela Koyo – emudeci. Vestíbulo do nada. Até… onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fonte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca e abre. Qdós – sobre o leito um punhal. Sobre o leito os textos de Plotino: Beleza é violência e estupefação.
Quem é ela?
Buda e Freud reunidos nas suas odes mínimas.
Risco de Beckett, Kafka, Bergman…
alguma coisa de Ionesco na dramaturgia.
Reinvenção de Orpheu e uma vontade pungente
de falar sobre o tempo,
suspenso, matemático, fluido…
sobre o incognoscível.
Lori Lamby, Joyce e o sedutor.
Ela, gótica e rubra
perambulando pela rua de coturno.
Em seu sítio com seus cães
– seu encontro com Kazantzakis.
A obscena senhora D.
Duas senhoras encharcadas de riso…
e o sinistro das horas
a desvelar sussurros gritos polifonias.
Hilda
– uma casa de águas. Romã baba alcaçus, doçuras e iras.
Hilst
– prisma cal amavisse; senhora-menina com seus olhos de cão.